sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Escola de pensamento e Escola de atividades.

Para Howard Becker, a história da sociologia, em vez de se deter em esquemas abstratos, incidindo sobre questões teóricas gerais, desenvolve um rendimento analítico mais interessante quando pensa a história das práticas sociológicas focadas nos métodos de pesquisa e nas pesquisas efetivamente realizadas. Assim, ele propugna que a história da sociologia "não é a história da grande teoria, mas a dos grandes trabalhos de pesquisa, dos grandes estudos sobre a sociedade". Em vez de uma história das ideais gerais, uma história das práticas de pesquisa e de seus resultados. E, de modo complementar a esta perspectiva, a história das organizações nas quais sociólogos e antropólogos trabalharam juntos, agindo juntos e pensaram juntos questões de pesquisa, método e realização do sentido acadêmico do que fazem. Para além da história teórica, é preciso desenvolver uma história da prática de pesquisa e uma história das organizações que desenvolvem pesquisas. É neste campo de questões que o autor também problematiza a noção do que seja uma "escola", uma vez que, na palestra que ele realizou no PPGAS/MN, na qual estou me baseando para levantar esses pontos, o tema de sua conferência foi justamente: a Escola de Chicago (ver Mana 2(2): 177-188, 1996). A pergunta de partida para Becker sobre o significado da Escola de Chicago, como de qualquer outra escola sociológica, era: "o que é que eles [os autores que são identificados como fazendo parte da escola] faziam e o que caracterizava seu trabalho?". E é, justamente, a fim de enfrentar a tarefa de pensar a escolar a partir de seu fazer que Becker faz uma importante distinção que tem um impacto decisivo para o debate: existe uma diferença analítica entre uma escola de pensamento e uma escola de atividades. Baseado em Guillemard, Becker define a escola de pensamento como um fenômeno de percepção coletiva em torno da ideia de que autores nos mais diversos lugares pertenceriam a um modo semelhante de pensar, de levantar questões de pensamento, algo que poderíamos chamar de estilo de pensamento. Já uma escola de atividades diz respeito "a um conjunto de pessoas que trabalham em conjunto", não há necessidade de que todos se dediquem a um mesmo estilo de pensamento para que trabalhem juntos, nem mesmo que adotem um modelo teórico comum. No caso da Escola de Chicago, não há uma teoria que a identifica, há algumas ideias que são relativamente bem compartilhadas entre os pesquisadores que a compõe, mas não há uma escola de pensamento no sentido forte do termo. Goffman e Becker são os herdeiros mais proeminentes da Escola de Chicago, mas, entre eles, há diferenças em vários sentidos, mas, apesar das diferenças, ambos compartilham a ideia de que o self, a subjetividade e o modo como as pessoas respondem às outras em processos de interação social face a face são questões decisivas. Mesmo que Becker adote um situacionismo radical, onde a interação é pensada entre indivíduos, e Goffman, numa parte famosa de sua obra, sob influência de Durkheim, pense a interação social em torno de papéis que os indivíduos assumem, buscando uma perspectiva da teoria antropológica dos rituais. Esse é um pequeno exemplo de como entendi a provocação de Becker sobre o fato de que escola de pensamento e escola de atividades são duas formas de apreensão dessa oscilação histórica das escolas sociológicas. Se há uma Escola de Chicago hoje, ela não está localizada em Chicago, está pulverizada pelo mundo todo, inclusive no Brasil, na forma de "um modo de pensar, uma maneira de abordar problemas de pesquisa" (Becker).

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O ilusório e o falso.

"En définitive, c'est toujours la société que se paie elle-même de la fausse monnaie de son rêve" (Marcel Mauss et H. Hubert. Esquisse d'une théorie générale de la magie, p.119). "Nada é mais difícil do que não nos iludirmos a nós próprios" (Wittgenstein). "Temos diferentes ideais de exatidão em diferentes épocas; e nenhum deles é superior" (Wittgenstein). "Diferentes interpretações devem corresponder a diferentes aplicações" (Wittgenstein).

Poder não é posse

"O poder e a posse não são a mesma coisa. Embora as coisas possuídas nos tragam também poder" (Wittgenstein).

Luta com a linguagem e topos guerreiro.

"Lutamos com a linguagem. Estamos envolvidos num luta com a linguagem" (Wittgenstein). Ou como escreveu Roland Barthes sob inspiração de Nietzsche: "estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pela formidável rivalidade que regula sua vizinhança. Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do Estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falantes se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro" (Barthes).

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A violência do postulado metafísico.

Existe uma distância enorme entre conhecer algo como algo, ver algo como algo e reconhecer algo em que se acredita. Conhecer algo como algo é da ordem do incognoscível (Kant). Ver algo como algo é da ordem do inominável (Wittgenstein). Reconhecer algo em que se acredita é da ordem do poder (Weber). Neste último caso, a imagem mutável das figuras da autoridade que alimentam a crença nelas próprias, como se elas se formassem com imagens imutáveis (o efeito propriamente da autoridade), faz do delírio do referente a condição mesma das figuras de autoridade, de modo que não há como se decidir entre ver e acreditar ver (Kafka). Também nesse sentido, Nietzsche ao escrever sobre Tales fala sobre a violência da crença, a violência dos postulados metafísicos contra o universo da empiria. "Crer significa submeter-se a uma autoridade. Depois de te teres submetido, não podes em seguida, sem te rebelares contra ela, pô-la primeiro em dúvida e voltares de novo a considerá-la aceitável" (Wittgenstein).

Nietzsche e Wittgenstein: duas notas.

"Limites de nossa escuta. - Ouvimos apenas as questões para as quais somos capazes de encontrar resposta" (Nietzsche). "Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo" (Wittgenstein).

O bem não é um lugar comum, é utópico.

"Não se pode levar os homens ao bem; apenas se lhes pode indicar o caminho para qualquer lugar. O bem reside fora do âmbito dos fatos" (Wittgenstein).

O olhar humano: entre valoração e preço.

"O olhar humano tem o poder de conferir valor às coisas; mas também faz que elas se tornem mais caras" (Wittgenstein).

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A superação do temor do contato e a antropologia.

Se o contato com o desconhecido é algo que provoca temor, se distâncias foram criadas para instituir fronteiras movidas pelo temor do contato, se a aversão ao contato nos impede de caminharmos tranquilamente entre as pessoas, se até mesmo nós nos fazemos massa para inverter o temor do contato, para fechar o contato frente ao outro, e até aqui estou seguindo de perto o argumento de Canetti, pode-se afirmar que o antropólogo, ao contrário do medo suscitado pelo contato com o estranho ou, ao menos, contrariando esse temor pela busca do contato com espaços de diferenças culturais, é alguém que exerce a título de profissão a condição de estranho, um estranho profissional, para usar a instigante expressão de Roy Wagner. Essa ideia de estranho profissional, e é preciso lembrar de O estranho, de Freud, possui uma força impressionante para minha visão do que seja o pesquisador de campo, é uma noção que provoca em minha imaginação de pesquisador a mais intensa reviravolta quanto à determinação do lugar que ocupamos nesse ofício que exige que nos lancemos ao sabor do contato com os outros, à deriva no contato com o outro, pois se trata de uma variância frente a outra variância, algo que tem menos a ver com destemor ou com aventura, mas com um exercício constante de controle do medo, que é o modo como Hannah Arendt nos aponta o que há de específico no atributo do corajoso. Não é, portanto, sem temor, não é como destemidos, que os antropólogos se lançam nessa, quem sabe, aventura controlada de suas pesquisas de campo, mas como corajosos relativos, ou seja, como estranhos que se postam profissionalmente entre estranhos específicos, particulares, como forma de obter um conhecimento mais interessante e por que não dizer mais geral sobre os seres culturais que a antropologia estuda. Como diz Arendt, "a pluralidade é a lei da Terra", estar entre pessoas, estar na pluralidade de condições que fazem as pessoas e os coletivos a que pertencem é o topos da própria antropologia, essa ciência do engajamento, como nos lembra Tim Ingold, quando busca se desfazer da incômoda noção de um observador não-observado, que é um tema muito importante também para a teoria antropológica da comunicação, desenvolvida por Gregory Bateson. A questão do inter homines esse é a questão central da posicionalidade do trabalhador de campo, na luta contra a linguagem, com a linguagem, a sua e a dos outros, em cujo campo de diferenças permanece indefinidamente tecendo a relação entre ser um recém-chegado no mundo social que pretende pesquisar e permanecer um estranho para esse mesmo mundo social e, principalmente, para o seu próprio, pois o antropólogo, do ponto de vista de sua própria cultura, será sempre suspeito de ser um traidor, um espião, despertando a desconfiança própria que se dirige a qualquer elemento que se ponha como tarefa realizar a missão impossível de uma tradução intercultural.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Desterritorializar a correspondência entre cultura, povo e território.

O problema da antropologia foi partir de um pressuposto segundo o qual há uma correspondência entre o objeto de estudo, a cultura, e as comunidades territoriais onde os estudos são desenvolvidos. Como se uma cultura fosse uma propriedade de um território estabilizado. Contemporaneamente, sabemos que o locus não é o objeto (cf. Geertz). Nem mesmo o povo do lugar é nosso objeto, mas os problemas que elaboramos através das tramas conceituais que desenhamos para conhecermos as realidades coletivas (cf. Viveiros de Castro). Todavia, precisamos ter consciência e tirar conseqüências metodológicas daquilo que a colega Cristina Patriota chamou de sonho de aldeia, quando pesquisamos nas cidades, usando os métodos consagrados do trabalho de campo antropológico. A autora toma como referência o seu estudo sobre condomínios horizontais na cidade de Goiânia que traz novas situações e interessantes problemas etnográficos para a discussão sobre pesquisas em meios urbanos. Um dos objetivos específicos metodológicos da minha tese, Guerra, mundão e consideração, que estou revisando para publicação e de onde tirei essa nota que lá é uma nota de rodapé, é, portanto, sob provocação de Marcio Goldman “refletir sobre a possibilidade de manter o ponto de vista antropológico tradicional, quando o objeto observado parte do coração da sociedade do observador”.

A micropolítica do saber, políticas de existência e a socialidade contra o Estado.

Terceira margem. O pensamento do fora. A arte de viver livre. Diferenças como morais possíveis, como relações entre epistemes, estéticas e éticas de espíritos livres. O movimento é a condição do conhecimento. Conhecer não é elaborar um discurso sobre o outro. Não é representar o outro. Isto é poder. Isto não é um cachimbo. Conhecer é um modo de interagir reflexivamente com alteridades reflexivas e criativas. Trocas de condições e de perspectivas. Conhecer é criar multivocalidades com outros. Regimes de diferenças criativos entre outros. Relações de liberdade. A cumplicidade é o estatuto político da aliança epistemológica deste desafio. Com medo dos outros, não há conhecimento. Tentar superar o medo, o desprezo, o horror à diferença, é sempre decisivo. As formas da alteridade são irredutíveis às nossas categorias. Reconhecê-las, dialeticamente, pode ser a pior das violências. O reconhecimento mata. Elabora política de identidade. Política de desmoralização. Socialidade contra o Estado. Desentendimento é o caminho correto. Um não rotundo à guerra. Éticas, estéticas e epistemes são sempre locais, a despeito de seus possíveis delírios de pretensão absoluta, as conexões locais em rede são o destino inescapável, obrigações recíprocas que obrigam às fugas, a fuga é a condição. Somos todos parentes e parente é serpente. Diante do Outro, a relação é um entre. Entre lugares. Nisso, o movimento é o esforço de se situar no campo intensivo das diferenças e a partir dele, ou seja, por meio do trabalho de campo e do campo enquanto lugar de pertencimentos fugidios e múltiplos para a prática da pesquisa etnográfica. Um situar-se que não é apenas enervante, mas um localizar-se, um exercício intensivo do senso de localização que caracteriza o bom trabalhador de campo que deve, portanto, mantê-lo aguçado. Estar no campo é buscar ocupar o lugar-limite em torno de eventos de não compreensão, a explicitação das relações de descompreensão é compreender o Outro, imaginando os diversos mundos, entre modos de criatividade. Pesquisar é habitar a zona de desconforto onde as próprias convicções são problematizadas, relativizadas e transformadas no devir outro, no devir nativo da criatividade do Outro. Não há como realizar isso, incólume, sem ser afetado por mudanças de caráter existencial. Como disciplinas de campo, ciências empíricas, Sociologia e Antropologia, de Mauss a Lévi-Strauss, estão entre aquilo que a fenomenologia e o estruturalismo antropológico deixam escapar. A ciência social do observado é uma micropolítica descritiva e autodescritiva com virtualidades minoritárias vazando por todos os lados. Pensar relacionalmente as relações sociais é adotar o primado da relação como método. Os termos das relações não preexistem a elas. São coetâneos, produzidos por elas. Destarte, a produção social e a produção do desejo são imediatamente constituintes. Há pressuposição recíproca e um sistema social aberto de causação circular não-totalizável. Numa perspectiva pós-estruturalista, que não é pós-moderna, em vez de fragmentação, o socius é concebido como campo social aberto, a noção de sistema não é abandonada, mas redimensionada de modo radical, como método, estrutura é um método de análise. Ocorre que não mais se considera a invariância na base do modelo. A variação cultural contínua passa a operar como a questão central de um modelo dispersivo das relações sociais. Subjetivação e objetivação das relações sociais. Analítica da dispersão. Neste sentido, a teoria geral do objeto é um péssimo ponto de partida para a prática da pesquisa. O geral não existe sem processos de objetivação, unificação, neutralização, reificação ou centralização que produzem entidades. Então, fazer a teoria do geral, seria aderir aos discursos do estatismo, permitir que o pensamento de Estado invada, colonize, aproprie-se do ponto de vista da analítica da experiência, matando-a. O universo de lutas funciona com meios simbólicos, meios de fantasia e modos de imaginação moral que produzem a realidade social, um mero efeito do campo histórico da luta que a produz como dado. Uma política de existência é uma afirmação de diferença. Uma diferença não é uma coisa, não é um bem, não é um atributo de um sujeito. Diferenças são relações. Relações de alteração e altercação. O gosto pelo singular é o que move a política de diferenças, de distâncias relativas e exclusões relacionais. Políticas de saber contra-hegemônicas precipitam existências anti-identitárias e conjuram os regimes morais fóbicos. Conhecer é lutar contra quaisquer microfascismos, começando sempre pelos nossos, os mais recônditos.

Estar fora dos centros, estar deslocado do lugar.

O fenômeno da mútua percepção entre pessoas é o ponto de partida das descrições etnográficas das relações sociais e também condição da análise. As pessoas estão imersas nas relações recíprocas que as constituem como praticantes de práticas de sentido situadas nas redes de relações instituintes de fronteiras simbólicas que produzem seus próprios coletivos, suas territorialidades e maneiras de uso do espaço e do tempo. As pessoas vivem de acordo com proposições cuja validade é uma função das crenças que foram depositadas naquilo que elas dizem de si mesmas na relação consigo e na relação com outros, como dizia Bateson. Ou, antes dele, Nietzsche, pois, por mais importante que seja conhecer motivos reais da conduta humana, o que nos importa como etnógrafos de alguma humanidade, ou ex-humanidades, é aquilo que as pessoas presumem e imaginam ser o real motivo de suas ações em função das crenças nos motivos do agir que, afinal, definem aquilo pelo que se mata ou pelo que se morre ou que pelo que se vive com tais ou quais felicidades e misérias. Wittgenstein dizia que um caminho certo é aquele que leva a um fim que foi arbitrariamente predeterminado por um agente, portanto, não haveria nenhum sentido em falar em caminho certo de modo absoluto, sem que se leve em consideração o objetivo predeterminado por alguém para o estabelecimento do que é certo. Em vez de desfazer o sentido da reflexão ética, ele nos mostra com esse pensamento que o problema é a afirmação por alguém do sentido absoluto do caminho certo, que seria certo enquanto tal, válido para todos os casos possíveis. Isto não passaria de uma quimera, pois, como Oswald de Andrade escreveu no Manifesto Antropófago, “as ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas”. Defesas de sentidos éticos absolutos são máquinas de colonização e catequização do pensamento dos outros, armas de desrealização das ideias alheias, reduzindo-as ao estatuto ontologicamente frágil do que se convencionou chamar “crença”, uma desrealização da substancialidade própria da episteme do outro. Dizer das ideias dos outros que elas são crenças é uma operação de guerra de conquista, um “epistemicídio”, de que fala Viveiros de Castro com nativos relativos. É possível produzir conhecimento com linguagens conceituais e procedimentos metodológicos rigorosos, certamente. Moralidades possíveis, virtualidades minoritárias e políticas contra quaisquer totalizações do real são o princípio condutor da empresa. Moralidades sem pretensão à universalidade, pois só há a priori histórico, como diz Veyne, dialogando com uma noção caríssima ao pensamento de Foucault. Estar fora dos centros hegemônicos de pensamento não é estar por fora do que se produz de conhecimento nos centros, afinal só há centros relativos às periferias relativas aos centros imaginados em relação a posicionalidade dos pesquisadores e pesquisadoras envolvidos nessas redes de estratificação dos mundos acadêmicos periféricos. São fantasias de poder que tornam literais as realidades dos centros. O pior centro de poder, o mais risível, pelo menos, é aquele que se constitui em torno da ilusão de um eu que concebe a si próprio como centro das relações sociais. Se colegas estão fora dos centros sem estarem por fora do que os proselitismos teóricos dos centros nos oferecem para consumo, como imaginar a produção de conhecimento e a reflexão teórica e política desta produção a partir de quem, como nós, está em função da periferias tomadas como centros? Esta pergunta retórica é apenas para que lembremos de incorporar criticamente, pegando carona nos termos reflexivos do casal Comaroff, a nossa condição de periferia intelectual e de dependência frente à produção e à circulação de ideais. E incorporar não é aceitar, não é reconhecer, é, ao contrário, superar o desconhecimento dessa condição. Frentes intelectuais atuando na periferia de outra periferia precisam fazer da reflexão sobre esta condição uma vantagem epistêmica contra as violências epistêmicas da ordem das coisas.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O autor como produtor

A ideia de criar este novo blog surgiu a partir de uma releitura bem recente do texto O autor como produtor, de Walter Benjamin. Na verdade, trata-se de uma conferência de 1934 e que foi incluída no volume 1 das Obras Escolhidas da Editora Brasiliense, com tradução de Sérgio Paulo Rouanet. E anoto aqui esta informação adicional sobre o tradutor do texto para registrar uma coincidência. A primeira vez que li este texto, quando era ainda estudante de graduação em ciências sociais, entre 1993 e 1996, no mesmo curso onde hoje ensino, foi também quando tive a oportunidade de assistir algumas aulas do Sérgio Paulo Rouanet, que veio à Fortaleza, à convite do departamento, mas, principalmente, do professor Manfredo Araújo de Oliveira. O debate realizado em sala de aula sobre as relações entre ética, antropologia e razão comunicativa foi muito importante para que nós compreendêssemos o que estava em jogo, como estudantes, em toda essa discussão que se realizava em torno da suposta e propalada "crise de paradigmas" das ciências sociais, debate influenciado pela recepção das discussões de Thomas Kuhn no Brasil. De 1993 para 2013, eu havia praticamente esquecido e engavetado os textos de Benjamin. Não estava mais interessado ou não via interesse em operar com esse autor. Enfim, estava mergulhado em profundas trevas. A iluminação para essa retomada das leituras de Benjamin veio para mim em boa hora. Estava precisando oxigenar as ideias. Foi por influência de colegas que em artigos que citarei em outra ocasião estão propondo retomada da relação Benjamin e a antropologia, mas, foi principalmente por que ao ler Força de lei, de Derrida, este texto praticamente me obrigou a retomar relação perdida com Walter Benjamin. A criação do novo blog talvez tenha a ver também com uma necessidade de reorganização das atividades de trabalho, ímpeto tão comum quando iniciamos um novo ano letivo, mas, sobretudo, tem a ver com o fato do meu outro blog, o Arquipelago, que venho usando desde 2006, ter ficado confuso demais, o que quer dizer que fui eu quem ficou confuso demais ao misturar tantos gêneros textuais num mesmo lugar. Então, este blog veio para desonerar o peso dos assuntos acadêmicos que também vinha postando lá no Arquipelago. É uma limpeza, espero que no bom sentido terapêutico indicado por Wittgenstein como sendo a tarefa da filosofia da ciência, mas que não seja uma limpeza no sentido negativo de uma higienização do pensamento, afinal, estou longe de querer abraçar qualquer forma de cientificismo ou de purismo em relação ao lugar que a "ciência" ocupa frente às outras formas de conhecimento. Como também já salientou Wittgenstein, os manuais de metodologia ou das formas canônicas de fazer ciência, em geral, apresentam uma forma idealizada da produção do conhecimento científico, quando as coisas são muito mais caóticas do que imaginamos. Tendo feito essa rápida contextualização e justificativa, a fim de iniciar o novo blog, quase uma questão de etiqueta e boa educação, gostaria de pontuar algumas ideias que o texto do Walter Benjamin suscitou em minha mente. (1) "o problema da autonomia do autor". A questão da liberdade do ato de escrever o que se quiser. (2) a pergunta sobre como uma obra literária se situa dentro das relações sociais de uma época, nos ajudando portanto a pensar as "relações literárias de produção" e o tema da "técnica literária" como estando ligado ao da superação da oposição forma-conteúdo. (3) A relação da posicionalidade dos intelectuais no processo produtivo e a exigência de se pensar na produção não como reprodutor e fornecedor de produtos para o consumo, mas como um autor produtor que refuncionaliza os meios literários de produção. (4) a discussão em torno do conceito de literarização das relações sociais e das condições de vida. (5) a relação entre confronto, interrupção e montagem na redefinição da posicionalidade do autor enquanto produtor, a reflexão como ato de "refletir sobre sua posição no processo produtivo". Enfim, há outros pontos importantes no texto, mas busquei registrar apenas estes para desdobrá-los, em outro momento, pois me parece um lance interessante discutir a relação entre trabalho de campo e etnografia como fazeres literários próprios diante desses problemas. Se a fusão de gêneros, ou como diz Geertz, a mistura dos gêneros, é a bola da vez (desde 1950, pelo menos, isso vale para a música, não sei se para a antropologia), o que importa nisso é fazer uma reflexão mais apurada sobre a noção de fusão, ao contrário do interesse quase completamente absorvido pelo problema dos gêneros, o que me parece ser um modo de permanecer bebendo da fonte de legitimação intelectual que o debate formalista empresta ao campo acadêmico de estudos literários e culturais nos EUA, principalmente, e para nós, situados perifericamente nas periferias da distribuição internacional do trabalho intelectual, afeitos aos mimetismos dos nossos centros de fantasia, também.