quarta-feira, 23 de julho de 2014

Seres pensantes (entre Foucault e Bourdieu), uma troca.

O saber não é um atributo exclusivo de uma categoria de pessoas. Todas as pessoas, sem exceção, são seres pensantes. As forças da inteligência costumam estar associadas às forças da ordem social. Usar o critério da inteligência, como se ela fosse uma instância pura e imaculada, pairando sobre o espaço social, é uma das formas pela qual se exerce o racismo da inteligência, baseado numa distribuição desigual de acessos, politicamente orientada pelos segmentos dominantes com o apoio da maioria dos trabalhadores intelectuais. A ideia de que todos os seres são pensantes pode ser usada politicamente de um modo reacionário ou de um modo libertário. É preciso aprender sobre os dois usos disso. Essa é a grande armadilha, uma vez que "...a razão encerra a virtualidade de um abuso de poder" (Pierre Bourdieu).

Homo sapiens

Nietzsche traduzia como filólogo homo sapiens como aquele que saboreia, que degusta, que distingue. Sapiens é o degustador. Esta é um questão a ser levada muito a sério, a relação saber e sabor, foi de Nietzsche que Barthes pegou essa ideia e a desenvolveu de um modo próprio, foi também de Nietzsche que Simmel, segundo quem o ser humano é quem procura, Foucault com a ideia de seres pensantes, e muitos outros: "sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem do gosto mais apurado" (Nietzsche).

Ressentimentos de Bourdieu.

É impressionante a força negativa da antipatia e do ressentimento com que Pierre Bourdieu ataca a condição do adolescente burguês que lhe foi negada na vida social. Esta negatividade da condição burguesa dos adolescentes com os quais ele precisou competir em torno do êxito escolar e de suas implicações e ganhos simbólicos ocupa um lugar decisivo no edifício de sua obra sociológica. Não se trata de reducionismo, é um tema problematizado por ele em diversos textos, explicitado com todo desespero analítico. A meu ver, faltou a Bourdieu, ao Bourdieu jovem, uma aprendizagem fundamental. Nós que não tivemos o privilégio de uma condição burguesa de adolescente não temos como única alternativa nos tornarmos um CDF ressentido, marcado pelo ódio de si, em permanente luto pela condição desabonadora da pobreza e sofrimento social. Há uma outra alternativa, tornar-se um vagabundo estudioso, um pândego, um anarquista (o próprio pai de Bourdieu era anarquista, mas a mãe impôs a disciplina de uma respeitabilidade perdida). Em vez da brutalidade, há também a poesia nas ruas e a alegria de pobre (namorar e fazer amor). Parece que Bourdieu foi muito infeliz. (E todas as palavras aqui são uma hermenêutica, são trechos da escrita dele, não são de fora para dentro). É que estou preparando aula para o mestrado, teoria sociológica contemporânea. Nas releituras que estou fazendo de partes da obra de Bourdieu, outro lance que está me chamando muito a atenção é o seguinte. Algo que eu nunca tinha percebido. Bourdieu usa recorrentemente, quando se trata de definir a tarefa sociológica de objetivação do "sujeito", os termos "brutal", "perverso", "cruel", referindo-se ao tipo de investimento que ele realiza como sociólogo. Ele está em vários trechos definindo a si mesmo e a sociologia como uma prática de brutalidade (a brutalidade da objetivação), de perversidade (maldade contra os que se acham puros e superiores, vingança, ressentimento) e crueldade (contra os que resistem a ser tratados como objetos). É toda uma linguagem imersa no mais tenso controle racional de uma emocionalidade à flor da pele. E quando ele escreve sobre a motivação escondida de sua desesperada dedicação ao trabalho de pesquisa, ele o faz com as seguintes palavras sobre os investimentos pulsionais dele no campo da pesquisa, motivado "pela desolação íntima do luto solitário: o trabalho desatinado era ainda a maneira de preencher um vazio imenso e de livrar-se do desespero ao demonstrar interesse pelos outros; o abandono dos píncaros da filosofia pela miséria da favela era, pois, uma espécie de expiação sacrificial de meus irrealismos adolescentes. (...) E tudo (...) mascara, portanto, a pulsão subterrânea e a intenção secreta que constituíam a face oculta de uma vida dilacerada" (Pierre Bourdieu).

A luta política e as ciências sociais.

Cientistas sociais precisamos "escolher entre dois partidos: posicionar seus instrumentos racionais de conhecimento a serviço de uma dominação cada vez mais racionalizada, ou, então, analisar racionalmente a dominação, em especial a contribuição do conhecimento racional para a monopolização de fato dos ganhos da razão universal" (Pierre Bourdieu). A luta política, portanto, é contra a "monopolização do universal", de um lado, e "em prol da universalização das condições de acesso ao universal", do outro. Meditações Pascalianas.

O arbitrário da força

"...a força do costume jamais anula completamente o arbitrário da força, alicerce de todo o sistema, que sempre ameaça revelar-se em pleno dia. Assim, pelo mero fato de existir, a polícia traz à lembrança a violência extralegal sobre a qual repousa a ordem legal..." (Pierre Bourdieu). Meditações Pascalianas.

Historicidade radical da razão e evitação do perspectivismo radical?

Uma da manobras mais confusas de Pierre Bourdieu é afirmar a historicidade radical da razão e querer ancorar no funcionamento do campo científico, na história do campo, que é um inconsciente epistêmico, as condições críticas e reflexivas de cientificidade de um conhecimento realista (relacional), evitando a todo custo o relativismo e também o perspectivismo radical. Ele mesmo fala de milagres e mistérios quando tenta resolver essa complexa equação (Preparando aulas para teoria sociológica contemporânea).

domingo, 13 de julho de 2014

Ceticismo e heurística. Algo a se pensar.

O primeiro passo, a ser reiterado sempre, é tomar consciência da profunda e incontornável inadequação de nossas ferramentas para dar conta do que quer que seja. Uma consciência aguda da insuficiência de nossas interpretações, inclusive daquelas que consideramos as melhores. Quando se perde isso, pula-se para fora do campo do saber. E entre o ceticismo e a dúvida metódica, abraço o primeiro, por via das dúvidas. Todavia, o ceticismo é apenas uma questão de método, fazer da radicalidade da dúvida, uma virtude epistêmica.

Natureza imaginária das relações sociais.

Aprendi com o professor Otávio Velho que, para além da disputa sobre o que é determinante nas entidades sociais, é preciso ir mais a fundo para discutir "a natureza imaginária" de qualquer objetificação, ou seja, partir da ideia de que quaisquer realidades sociais identificáveis são "inseparáveis da própria ação humana". Estudar as questões em termos de perspectivas. Quem ainda não o leu, é só pegar Mais realistas do que o Rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas, e se deliciar com a aprendizagem de uma vida.

Narcisismo e superego cultural.

O narcisismo humano arranja todo tipo de pretexto para se expressar. O autoerotismo é uma das máquinas mais engenhosas de burlar as fiscalizações do superego cultural. Ocorre que até certo ponto o narcisismo é um mecanismo protetor contra a frustração ligada à inibição da meta do amor, pela perda ou destruição do objeto do amor, ou pelo retraimento que reforça o amor de si que se projeta no outro, internalizando-o parcialmente, instrumentalizando-o de modo feroz, possessivo, perverso. Ou então é a psicose, a desconsideração total por qualquer objeto.

sábado, 12 de julho de 2014

La sociologie dérange

Para Pierre Bourdieu, viver a sociologia não é uma tarefa fácil. O esforço da reflexividade sobre os mundos sociais faz do sociólogo alguém que se coloca em permanente situação de autoanálise. Pois sem a autoanálise das condições mesmas de existência de um estilo de vida pessoal e acadêmico sociológico, a sociologia não cumpriria sua tarefa. A sociologia é uma perturbação que perturba aos outros e aos próprios sociólogos. Nós, sociólogos, somos todos perturbados por ofício. Pois a nossa tarefa é analisar as coisas pondo-as em desordem, "la sociologie dérange".

Contra a obsolescência do saber

É tão contraproducente permitir que haja obsolescência no campo da produção acadêmica. Colegas vão morrendo e as pessoas vão deixando de estudá-los, parando de lê-los, de indicá-los para os estudantes, como num passe de mágica. São muitos os exemplos. Vou citar um. Ruth Cardoso. Ela orientou Gilberto Velho e Lygia Sigaud. Os três já são falecidos. Deixaram artigos e livros super interessantes, mas não são mais citados como antes, exceto por pequenos grupos de herdeiros, lutando entre si pelo legado, ou por outsiders. Dos três, fui aluno dos dois últimos. Lygia Sigaud era tão rigorosa que levantar a mão na sala de aula dela, pedindo a palavra, era uma temeridade, pois era preciso que houvesse trabalho fundamentando a vontade da fala, se fosse falar por falar, para dar opinião sobre os textos, era melhor não levantar a mão.

Distanciamento com Lévi-Strauss

Os sistemas sociais, com suas práticas de divisão, poderiam não existir tais quais existem atualmente, ou seja, eles não são necessários, não estão inscritos na ordem das coisas, nenhum sistema social é essencial, o que parece ser fundamental, não o é. A ginástica do pensamento é propor mudanças variadas nas escalas temporais para converter aquilo que pode parecer fundamental em algo bem diferente do que parece ser. As formas de vida, quando analisadas a partir de um distanciamento, de um olhar distanciado, fazem com que nos situemos numa distância, numa outra escala de tempo, a análise, portanto, "está condicionada pela distância, por esse afastamento que só deixa filtrar o essencial" e o "deslocamento que elas exigem de nós para estudá-las nos condena a perceber apenas algumas propriedades que são essenciais a elas e ao espírito humano". Há tarefas a se levar a sério. E a análise sociocultural é uma delas, pois "a etnologia sempre se deu por tarefa explorar os limites daquilo que se considera num momento dado, numa época dada, como sendo os da humanidade" (Lévi-Strauss). E a atitude etnológica por excelência é "colocar-se sempre mais além do que se considera ser o possível, para o homem, trazendo para o interior da humanidade fenômenos fronteiriços, fenômenos à margem. Trabalhamos para uma ciência que deve se manter sempre à margem do desconhecido" (Lévi-Strauss).