sábado, 31 de agosto de 2013

A Academia de Polícia Militar do Ceará: uma releitura.

Em dezembro de 2006, ministrei pela primeira vez a disciplina Antropologia do Estado, no Curso de Especialização em Cidadania, Direitos Humanos e Segurança Pública, depois do credenciamento do LEV-UFC, via concorrência de edital público, como uma das instituições de pesquisa junto à Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP) da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), do Ministério da Justiça, Governo Federal. A turma era formada por 44 profissionais de segurança pública (19 policiais militares, 3 bombeiros militares, 14 policiais civis, 6 guardas municipais, 2 policiais rodoviários federais). Eu havia publica o livro Os filhos do Estado, sobre a formação dos oficiais da PM, em 2002. Pedi então que a turma fizesse a leitura deste livro. Um fichamento com resumo, passagens que mais chamaram a atenção e um comentário crítico e pessoal sobre o livro. Estes comentários são interessantíssimos. Há avaliações, correções, acréscimos de novas informações, complementações, enfim, uma gama incrível de novos dados gerados a partir de um estudo de recepção junto ao público que eu havia pesquisado anteriormente. Acabei de organizar esse material. Vou sistematizá-lo e analisá-lo. Vai render uma boa releitura. Vou buscar fazer uns cinco boas entrevistas em profundidade com alunos dessa turma com quem ainda mantenho contatos. Assim, teria dados do período 1997-2000, sobre a Academia de Polícia Militar, analisados no livro de 2002, dados desses comentários de 2006 e dados de 2013 dessas entrevistas. (nota de trabalho).

Rebeliões de prisioneiros no Brasil.

Que maravilha é fazer faxina na papelada acumulada ao longo do tempo! Encontrei uma cópia na íntegra do minha monografia de graduação. Eu a tinha dado por perdida. Ela se intitula Revolta na sociedade dos cativos. Fiz um trabalho de campo de três meses nos dias de visita, às quartas e aos domingos, como visita, no antigo IPPOO (Instituto Presídio Professor Olavo Oliveira). Usei também farto material de jornais sobre rebeliões de prisioneiros em todo o Brasil. A pesquisa aconteceu entre 1993 e 1995. Apresentei para a banca, no dia 30 de agosto de 1995, composta por César Barreira (orientador), Maria Auxiliadora Lemenhe e Custódio Luís Silva de Almeida. Sem saber, registrei neste trabalho o nascimento do PCC. Vou reler esse troço. Dá para fazer alguma coisa a partir dele. Descrevo a onda de rebeliões nos presídios de São Paulo e as rebeliões do Ceará, incluindo a que fez Lorscheider refém no IPPS, no dia 15 de março de 1994.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Desejo

"Em que recanto do corpo adverso devo ler minha verdade?" (Barthes). Segundo Barthes, existe um gozo em compreender e ser compreendido. Par contre, há também alucinações verbais na busca do sujeito pela compreensão, uma busca por um lugar que não se encontra e que é quase sempre imposto por uma palavra de ordem. A palavra de ordem faz o sujeito sofrer, uma vez que o sujeito cultural que ordena é uma instância de cuidados (de regramento, regulamentação), cuidar do outro depois de tê-lo feito adoecer é o dispositivo moral por excelência.

Matrix

"If he is inspecting a rough spot on some surface by means of touch, he moves his finger over the spot, thus creating a shower of neural impulses with definite sequential structure, from wich he can derive the static shape and other characteristics of the thing investigated. To judge the weight of an object moves across the fovea. In this sense, our initial sensory data are always 'first derivatives', statements about differences which exist among external objects or statements about changes which occur either in them or in our relationship to them" (Gregory Bateson).

O presente como campo de batalha

Se há alguma certeza, ela se dirige para as coisas do passado, e, mesmo assim, a certeza estaria em função das lutas políticas do presente em torno da memória social, ou seja, o presente, como o campo de batalha, faz das certezas do passado a dissolução da unidade real entre os objetos e o sujeito do pensamento, distorcendo-os, fazendo-os perder qualquer unidade, exceto a mítica, que se refaz na mitológica das sombras e ruínas de uma memória orientada ao inexistente, cuja única força é a da organização aberta, infinita, inacabada, que se atualiza a partir dos meios de fantasia de grupo que se lhe impõem.

A força do pensamento

A força principal, a força decisiva, é a força do pensamento. Não se trata de idealismo alemão. Ou melhor, trata-se da sua resolução. As condições de existência determinam as formas do pensamento, todavia, tais condições não são causas suficientes de tais formas de pensamento, quando as formas de pensamento são lançadas na fluidez das coisas com as quais elas lutam para as demarcar, e essa força de demarcação, essa força de pensamento é capaz de criar novas condições de existência, é uma força existencial para além da existência. É a abertura.

Comunicação e diferença: acercando-se do problema da crise da representação.

A compreensão da matriz cultural com a qual as pessoas operam e a compreensão da natureza da interação entre as pessoas são dois objetivos centrais para o estudo das relações sociais (Bateson, 1987). Segundo o autor, essas duas formas de compreensão produzem dois tipos de informação sobre a vida social, elaboradas na perspectiva de uma antropologia da comunicação que responde a um interesse teórico mais amplo sobre o fenômeno da comunicação. Para que se possa aprofundar a discussão sobre as entidades socioculturais, o ponto de partida é a problematização da noção de codificação. Inicialmente, é preciso atentar para o fato de que, independentemente de uma abordagem mais organicistas ou mais mentalista sobre os códigos, há uma primeira aproximação que requer a distinção entre processos intrapessoais e eventos do mundo externo e que justamente sobre essa distinção que se elabora a referenciação do conceito de codificação. O que está em questão são os modos como as informações são codificadas na relação entre cérebro ou mente de animais humanos, dependendo do ponto de vista teórico, e eventos e objetos do mundo exterior. Alguns pontos merecem destaque na relação entre informação e codificação. a) A relação entre objetos e eventos externos e processos internos do indivíduo precisa ser pensada como uma relação sistemática, o que não quer dizer que não existam elementos não sistemáticos na relação, o que alguns especialistas chamam de ruído. A decodificação das informações está em função da dimensão sistemática da relação. b) Dizer que há uma dimensão de sistema na relação entre processos internos e eventos e objetos externos é apontar para o caráter transformacional do processo de sistematização da relação. Afinal, se a relação não for preservada em sua dimensão de sistema de relação não haveria como pensar as formas por meio das quais os eventos e objetos externos são relatados pelas representações internas desses eventos e objetos enquanto elementos de processos mentais. No estudos dos animais humanos, três variações do processo de codificação tornam-se especialmente relevantes: a codificação digital, a analógica e a das figurações. A última destas três variações, a que corresponde ao que estuda a psicologia das formas, é decisiva para a abordagem teórica da vida social. Se não houvesse processos de figuração os animais humanos não poderiam pensar sobre objetos concretos. Pelo uso da linguagem, as relações entre eventos e objetos exteriores podem ser percebidas, todavia, elas não são apenas percebidas enquanto relações entre relações, pois há uma derivação da percepção baseada nas formas específicas de certas relações que permitem aos humanos perceber "coisas". Trata-se de um processo de sumarização, do uso do sumário, como discute também Cicourel em vários textos, dialogando com a etnometodologia e as ciências cognitivas. Ocorre que pensar em termos de "coisas" é um processo secundário, é o uso de formas mentais que possibilita essa incrustação de coisas no processo mental. A construção de modelos mentais que sumarizam relações entre relações como relação entre coisas é um passo decisivo na elaboração de um ordenamento das práticas de sentido dos animais humanos. O conhecimento dos eventos e objetos externos são derivações das relações entre eles, todavia, a percepção humana desloca a relação no sentido de uma relação entre si e os objetos e eventos exteriores. Esse deslocamento é a base do tipo de figuração que os humanos realizam para apreenderem relações de relações como coisas e numa perspectiva mais ampla de um estado de coisas, correspondência esta, entre percepção e estado de coisas, que será o grande nó górdio da metafísica ocidental até Wittgenstein: o problema da correspondência entre pensamento e mundo, o problema da representação e de sua adequação.

Cacos de discurso (figuras) e dimensão distribucional. Pistas de Barthes.

Discurso é um conceito com a qual se diz algo sobre aquilo que discorre no discorrido. "Dis-cursos é, originalmente, ação de correr de cá para lá; são idas e vindas, 'caminhos', 'intrigas'" (Barthes, p.xviii). Nos fluxos, os discursos se multiplicam em sua trasitoriedade, precariedade e instabilidade, o que se realiza "por ondas de linguagem", e são esses "cacos de discurso" que Barthes propõe chamar de figuras. As figuras não chegam a ser esquemas, são gestos apanhados na ação. Gestos do corpo. "A figura é o amante em ação". As figuras estão relacionadas ao que se passa no discurso, ou melhor, ao "discurso que está passando", algo lido, ouvido ou experimentado. "A figura é delineada (como um signo) e memorável (como uma imagem ou um conto)". A figura se funda no reconhecimento de uma cena de linguagem, o que implica em reconhecimento de uma verdade. As figuras funcionam como sentimentos. O discurso é "tecido de desejo, de imaginário e de declarações". O que se passa, o discurso que passa, é marcado por traços de códigos. Um código está em função do preenchimento que lhe é dado pelo uso que uma determinada história faz dele. É como se a figura fosse um lugar, uma tópica, "em torno da figura, os jogadores brincam de passa-anel". As figuras não são definições, são argumentações. "Exposição, narrativa, sumário, pequeno drama, história inventada". Figuras formam argumentos. E tais argumento são instrumentos de distanciamento. O argumento não se refere ao sujeito, mas sim ao que o sujeito diz. Figuras são usadas, identificadas, manejadas e rememoradas. "A figura parte de uma dobra de linguagem". Em cada figura, há um modo de construção que importa menos pelo que diz como mensagem e mais pelo que articula, o que importa no uso da figura é o emprego dela na economia significante do sujeito. Há frases funcionando como matrizes de figuras. "Dizem o afeto". "As palavras nunca são loucas (no máximo perversas), é a sintaxe que é louca". Há alucinação verbal no emprego das frases como matrizes de figuras. Há comoção, há sobressalto, há algo tempestuoso (cf. termos de Barthes). Há reservas de figuras no imaginário do sujeito às quais ele recorre de modo circunstancial e essas figuras acionadas surgem sem ordem, pois sob as injunções do acaso. O que dá ordem é a atividade do sujeito cultural que evita a contradição. Que trabalha pela e na ordem. No uso das figuras não há essa instância do sujeito cultural fazendo a ordem. No uso das figuras o sujeito busca seu lugar, não o encontra ou encontra um lugar imposto. "As figuras não pertencem a nenhum sintagma". "Em termos linguísticos, diríamos que as figuras são distribucionais, mas não integrativas; permanecem sempre no mesmo nível" (p.xxii). Na perspectiva do sujeito cultural totalizante e unificador da ordem, os eventos são dotados de sentido e podem ser interpretados em sua causalidade e finalidade, há dispositivo moral nessa intervenção do sujeito cultural total. Trata-se de submeter os fluxos à ordem do "grande Outro narrativo". A narração está em função da ordem simbólica, do seu ordenamento. Mas só há ordenamento se a "força excessiva" seja depreciada, essa depreciação do excessivo é uma função da ordem. Trata-se de forçar o próprio sujeito a reduzir "o grande jorro imaginário pelo qual é atravessado, sem ordem e sem fim", transformando-se no estado mórbido do sujeito cultural submetido, "crise dolorosa" que faz sofrer e justifica a cura, ou demanda a cura, e a cura é o preço que se paga, é o tributo que se paga, à ordem cultural (e dos textos que a representam ou de tudo aquilo que a representa). O discurso está na história "sem jamais conhecê-la". "É do princípio mesmo deste discurso (e do texto que o representa) que suas figuras não se possam arrumar: ordenar-se, caminhar, concorrer para um fim (para um estabelecimento): não há primeiras nem últimas" (p.xxiii).

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Sentir-se é o modo da corporalidade

Corporalidade e sentimento estão em pressuposição recíproca, por isso não há de se pensar o corpo como algo fisiológico e o sentimento como algo que está num patamar superior, como se o corpo fosse uma infraestrutura para um sentimento da alma que habitaria num nível superior uma superestrutura psíquica. Se há pressuposição recíproca, há causação circular entre corpo e alma, entre corporalidades e sentimentos. Os sentimentos são as corporalidades, uma vez que "o sentimento como sentir-se é, precisamente, a maneira como somos corporais; ser corporal não significa que um apêndice chamado corpo é simultaneamente ligado à alma, mas no sentir-se o corpo está desde o princípio co-inserido em nosso si próprio, e, com efeito, de um modo tal que ele permeia a nós mesmos em seu estar em tal ou tal estado" (Heidegger, p.91). O sentimento tanto realiza a feitura de um corpo como é na corporalidade, enquanto corporalidade, que se interpela discursivamente ou não discursivamente as coisas e os seres com quem nos relacionamos nos mundos em que habitamos. O indivíduo, como efeito do espaço das relações que o tecem, é também o lugar do experimento baseado nos processos de incorporação dos erros, paixões, dos saberes, etc. É no modo "como nos incorporamos a nós mesmos" (Nietzsche) que se efetua a corporalidade como um sentir-se, algo para além das condições biológicas que causam o corpo sem serem sua causa suficiente. O conceito central então para darmos conta da compreensão do modo corporal humano, pois bem se trata de uma antropologia de nós mesmos que estamos a propor, é o conceito de incorporação (cf. Heidegger, p.255). A relação com o incorporado é uma das dimensões mais significativas da finitude radical do humano frente à tarefa do seu fazer o corpo. São as zonas de transição entre o incorporado e o processo de incorporação, enquanto incorporação de novos saberes, novas paixões, etc. que irão definir os processos de identificação sem os quais a relação entre estabilidade e transitoriedade na vida sociocultural não poderiam ser sequer interpretadas. O que foi incorporado é a resultante de um processo de incorporação de relações sociais. A incorporação e a desincorporação das relações ganha nesse sentido um lugar central para a análise (ver Viveiros de Castro, por exemplo). O incorporado é capaz de corporificar itens de enquadramento da experiência de incorporação, de modo que corporificar as relações é um modo de produzir a substância da vida social, e a natureza principal dessa incorporação é a da incorporação do pensamento, a incorporação das concepções incorpóreas que definem os limites da experiência. No jogo da vida, os erros e as opiniões incorporados decidem as condições futuras da existência. O corpo incorporado estabiliza fluxos, produz alguma segurança ontológica diante do turbilhão da vida, enquanto jogo da vida. "A vida vive na medida em que se corporifica" (Heidegger, p.439). A corporificação de um corpo produz o incorporado como uma forma de vida diante do turbilhão, frente ao abismo, no risco intensivo do devir, a saber, do próprio real. Nesse sentido, "o corpo é ao mesmo tempo transmissão e passagem" (Heidegger, p.440). Com isso, extraímos um ponto central para o tipo de análise antropológica que estamos propondo: "o corpo precisa ser transformado em fio condutor não apenas para a consideração do homem, mas também do mundo: a projeção do mundo a partir da posição do animal e da animalidade" (Heidegger, p.440). É na compreensão da determinação do corpo que reside o fio condutor da interpretação do mundo.

A topologia do corpo

O corpo, portanto, como propõe Foucault, é uma 'topia implacável'. É o contrário de uma utopia. Uma pele que recobre o corpo como uma grade através da qual se fala, se realiza a mútua percepção até a morte. Estamos condenados ao corpo, destinados a apodrecer nele. Se a utopia é o lugar fora do lugar, a utopia é o lugar onde não há corpo, esta topia, este lugar absoluto. A utopia nos lança no universo daquilo que é incorpóreo. Destas utopias que incitam ou que aniquilam, a mitológica da alma que habita o corpo se realiza como um pensamento mágico que performa o psiquismo humano. E na relação constituinte do par corpo e alma, o corpo volta-se contra as utopias e se refaz na dimensão do aberto e fechado, do penetrável e do opaco, um jogo de visibilidades e invisibilidades se instaura entre a presença e o abismo de um corpo. Um corpo de fantasia passa a habitar na invisibilidade profunda o corpo tópico que me rodeia no invólucro diante do outro. E assim, do lugar absoluto do corpo, da topia corporal, emerge o corpo como ator utópico de si mesmo. O corpo que se comunica com a invisibilidade dos corpos, com os fantasmas dos corpos, um corpo que se faz corpo como fragmento de um espaço imaginário. (cf. Foucault).

O lugar absoluto

Barulhos e ruídos. Um ranger de porta. Um buzinaço. Uma voz que chama. Começar a escutar sons que ferem o estado de sono, sons que nos fazem passar a uma vigília incerta, tateante, despertar, abrir os olhos, acordar com o barulho da vida coletiva. E ela é ruidosa. Levantar de uma noite bem dormida ou mal dormida, bem amada ou mal amada, no conforto ou no desconforto, ir tomar um banho, esse privilégio global, escovar os dentes, caminhar, comer algo decente, outro privilégio global, apesar de não se ter tanta certeza quanto a algo para além das aparências poder ser considerado uma comida decente, ver sombras e luzes, escutar a própria respiração, sentir o cheiro de um outro ou o cheiro de si, do suor noturno que se esvaiu como o jato de mijo que também tem seu ruído matinal característico. Seja onde for, sejam em quais circunstâncias, sejam as condições mais ou menos embrutecidas, o ser humano, esteja onde estiver, ao despertar para mais um ciclo da vida diária, após o sono que fizera tombar a realidade na luta onírica contra a latência da vida que se nos escapa, um tombo que a deforma, o ser humano então dá-se conta de que há um lugar do qual não se pode mais e jamais escapar, enquanto se estiver vivo, ao menos. Um lugar sem o qual não haveria sequer deslocamento do indivíduo pelo espaço, não haveria propriamente o indivíduo desse espaço das relações que o constituem como um efeito de suas tramas e ardilezas e ciladas, mecanismos e suas contingências que lhes são tão repetidamente inescapáveis. De qual lugar é esse de que falamos? De qual lugar é esse do qual não se pode jamais prescindir o indivíduo enquanto pessoa no seu devir? Trata-se do lugar do corpo. O lugar absoluto do corpo. Uma vez que o corpo não nos abandona, nem mesmo quando nós o abandonamos, maltratando-o, ferindo-o, jogando-o num lugar qualquer como uma coisa inerte que se descarta. Esse lugar de abandono, essas zonas de abandono, de dor, de sofrimento, de auto-aniquilamento, por vezes, não são capazes de exterminar a capacidade total do corpo, enquanto não romper as amarras com os limites da experiência que o mantém em pleno funcionamento, a vida como uma relação com a morte, e esse qualquer fragmento do corpo abandonado, sofrido, lançado à diante na zona de indecisão, ele será sempre o lugar do próprio corpo, pois "je ne peux pas me déplacer sans lui; je ne peux pas le laisser là où il est pour m'en aller, moi, ailleurs. Je peux bien aller au bout du monde (...), il sera toujours là où je suis. Il est ici irréparablement, jamais ailluers. Mon corps, c'est le contraire d'une utopie, ce qui n'est jamais sous un autre ciel, il est le lieu absolu, le petit fragment d'espace avec lequel, au sens strict, je fais corps". (Foucault).

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Entre a dúvida radical e o fundamentalismo

As possibilidades de entendimento estão irremediavelmente bloqueadas? As promessas do pluralismo liberal não comportam mais a suspeita de produzirem a contrapartida do fundamentalismo? As ansiedades da dúvida radical, de um lado, e a compulsão da submissão estúpida, de outro, poderão fazer outra coisa do que indiferença vigilante ou guerra aberta? (nota de estudo, relendo uns textos de Giddens sobre o pós-tradicional).

domingo, 18 de agosto de 2013

Genealogia do desejo e ethos da vida intelectual.

De Sêneca a Foucault, é na relação com a morte que uma forma de vida pode ser avaliada na sua singularidade, individualidade e autenticidade. A literatura é um dos modos mais intensos e significativos de elaboração dessa relação. A morte corre passo à passo à constituição da forma de vida. É no modo de morrer que se torna possível vislumbrar o valor do valor de uma existência para além dela mesma, como abertura para as formas absolutas da alteridade. Uma genealogia do desejo, em torno de processos de constituição de eticidades, envolve a ideia de que moralidades possíveis promovem deslocamentos em relação ao único lugar absoluto, o lugar do corpo, tais deslocamentos são heterotopias, corpos possíveis, moralidades possíveis. O ponto de partida é a relação com a morte, o que implica numa relação com o prazer. Afinal, uma forma total de prazer é uma relação com a morte, como costumava dizer Foucault. Prazeres possíveis transacionam com moralidades possíveis, o que faz nascer a ideia de forma de vida como um ethos, como uma política de existência, um estilo de existência. E é essa discussão que, a meu ver, interessa à vida intelectual concebida como uma forma de vida, como uma política do desejo.

Três genealogias possíveis

"Il ya trois domaines de généalogies possibles. D'abord, une ontologie historique de nous-même dans nos rapports à la vérité que nous permet de nous constituer en sujets de connaissance; ensuite, une ontologie historique de nous-même dans nos rapports à un champ du pouvoir où nous nous constituons en sujets en train d'agir sur les autres; enfin, une ontologie historique de nos rapports à la morale qui nous permet de nous constituer en agents éthiques" (Foucault, volume IV, p.393).

sábado, 17 de agosto de 2013

Sobre a sociologia pragmática francesa

Pesquisas as competências e as habilidades das pessoas comuns e o status dos especialistas? Uma inversão considerável, mas, no fundo, pode não passar de uma inversão. Se a ideia segundo a qual os atores sociais na vida diária desenvolvem capacidades críticas pelo uso que fazem delas para refletir sobre o que fazem deixar intacta a grande divisão entre vida tradicional e "modernidade reflexiva", então, talvez, a inversão não seja tão radical assim, quanto poderíamos imaginar. As concepções sociológicas do que sejam competência e habilidade podem entrar de contrabando, enquanto artefatos culturais da modernidade, na lógica do objeto, afinal, como na antropologia da pessoa, se quisermos estudar competência e habilidade de pessoas comuns, é preciso partir das concepções imaginárias e os seus efeitos reais (e todas as são e todos os são, como lembra Viveiros de Castro) que aquilo que chamamos de "pessoas comuns" usam para definir o que seja pessoa, o que seja uma pessoa comum, e, principalmente, sobre o que seja ser competente e habilidoso. Caso não se faça esse exercício, o etnocentrismo ameaça ruir todo o edifício da sociologia das competências. Sei que os interessados estão cientes disso, mas será que as reflexões sobre isso estão acompanhando o avançar lépido dos debates em sua efusividade?

Contexto é um conceito

É interessante experimentar o que as coisas podem dizer fora de contexto. Por vezes, esquece-se que o contexto é um conceito. Há um trabalho de produção do contexto cujo resultado, enquanto produto, "o contexto", é relegado à posição de pressuposto para a análise. O que a deforma, uma vez que a análise passa pela explicitação daquilo que está pressuposto. Deste modo, as leituras externalistas sobre as relações entre poder social, conhecimento e autoridade interpretativa tendem a fazer esquecer que o poder de causalidade imputado pelo analista a qualquer um dos termos faz dos outros termos, termos redutíveis a uma instância que lhes é externa, sem que se problematize a produção da externalidade daquilo que funciona supostamente como contexto. O que as coisas podem ser fora de contexto? Essa pergunta pode ser heuristicamente mais fundamental do que o procedimento já congelado de colocar as coisas no contexto, como se este fosse uma causa do que emerge. Se há condições de existência de algo, essas condições tornam-se necessárias no processo social de produção da condição enquanto necessidade histórica, mas isso não faz da condição uma razão suficiente dos atos de sua própria delimitação, pois caso assim fosse, não haveria história. Quem fez uma excelente crítica do conceito de contexto foi Bateson e, mais recentemente, Strathern. Sobre a relação texto-contexto, ver também Derrida.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Ethos da pesquisa

Uma prática de pesquisa individualizada não pode prescindir do pertencimento a uma rede de pesquisa e para dar sua contribuição a esta precisa se concentrar numa única problematização ao longo de anos. Estudar em profundidade um único problema, repetindo sistematicamente as diferenças que o caracterizam, é muito mais profícuo do que querer dar conta de vários problemas ao mesmo tempo, afinal, um único problema já é um campo de questões aberto e múltiplo. Não quer dizer que tenhamos que entrar numa caixa-preta de especialista, a especialização é um requisito, mas não a razão suficiente da busca empiricamente enraizada de uma problematização teoricamente bem informada.

domingo, 11 de agosto de 2013

Efeitos inesperados da pesquisa bibliográfica

Fazer pesquisa bibliográfica a partir de uma entrada específica, uma palavra-chave, provoca uma série não prevista de eventos de referência que nos remetem a uma heterogeneidade incrível de objetos bibliográficos que não estavam sob atenção da busca, mas apenas a atenção que se pode performar para a marginalidade desses objetos que não aderiram de modo direto à meta de busca é que vale a pena na própria busca.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Uma questão teórica que me move

A questão teórica a que estou me dedicando, pois penso que não há como nos dedicarmos a um mundaréu de coisas ao mesmo tempo, é a seguinte: como pensar as práticas fora do campo, enquanto campo/habitus (Bourdieu), reformulando conceitualmente o problema enquanto "campo social aberto"?

A descoberta da pólvora não existe sem a produção dos colegas que descobriram primeiro.

No ano passado, no encontro da ANPOCS, um colega mais experiente do que eu e também amigo, o Eduardo Paes Machado, professor da UFBA, foi assistir à minha apresentação no GT Sociologia e Antropologia da Moral. No aeroporto de Guarulhos, voltando da ANPOCS, ele me chamou para uma coversa. Pediu licença para me fazer uma crítica, um ato para lá de generoso, na verdade. Disse-me que minhas pesquisas eram interessantes, mas que, quando eu fazia comunicações, dava a impressão que eu estava a descobrir a pólvora, quando, na verdade, para cada problema que eu apresentava como uma descoberta, era possível encontrar ampla literatura acadêmica internacional. Recomendou-me buscar usar mais o Portal de Periódicos da CAPES e me atualizar com a referida literatura. Levei muito a sério a orientação e já estou colhendo os primeiros frutos. Vou dar um exemplo. No paper que apresentei na ANPOCS, esse mesmo que Eduardo assistiu, e que foi debatido pelo Luiz Antonio Machado da Silva que também foi para lá de generoso em suas considerações, eu faço uma análise, recorrendo a Schutz e Deleuze ao mesmo tempo, essa mistura inusitada, para pensar como um eu (um ator social enquanto um eu, pensando como um eu) pensa-se como centro das relações sociais (Schutz) e como centro de poder (Deleuze). A revisão do artigo estava um pouco estagnada, quando encontro três artigos (de um americano, de um japonês e de uma alemã) que, mais experientes do que eu, já tinham feito descoberta semelhante e desenvolvido com muito mais competência do que eu estava a realizar. Resultado: estou incorporando os três artigos ao meu próprio artigo, o que reforçou demais o núcleo da minha argumentação e assim estou me sentindo mais seguro para submeter o texto a uma revista acadêmica. Só tenho a agradecer à dica amiga do competente amigo Eduardo, às orientações do Machado e dos colegas presentes no debate da ANPOCS e aos colegas que produziram antes de mim e bem melhor do que eu mesmo que estou nas tentativas para ver se aprendo a trabalhar direito (com qualidade, consistência e dialogando com produção existente). E esse texto vai ser reescrito e virar uma nota de rodapé do dito artigo. Compartilho aqui com meus orientandos por motivos francamente didáticos, pedagógicos.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O campo social aberto. Revisão de literatura.

Elias Canetti O medo do desconhecido inaugura distâncias. Para os coletivos antropológicos, o contato com aquilo que lhes é estranho mete medo. "Todas as distâncias que os homens criaram em torno de si foram ditadas por esse temor do contato" (CANETTI, 2005: p.13). O medo dos outros é uma atitude persistente nas relações sociais. O temor em entrar em "contato com o desconhecido". A elaboração de distâncias informadas por tal temor. As aversões estimuladas pela construção das divisas que estabelecem territorialidades separadas, distintas. A dificuldade de se lidar com o estranho. A relação entre as fronteiras de uma pessoa e sua coletividade de pertencimento face a outras pessoas e suas coletividades. Enfim, a elaboração de delírios paranoicos que fazem dos outros um fonte perene de desconfiança, pois os outros são os que potencialmente trazem agressividade ao mundo. Os outros concebidos como fonte da agressividade, como origem da violência. Entre atitudes de abertura para o contato com o estranho e atitudes de fechamento para esse contato, os coletivos se autonomeiam, demarcam a relação entre o espaço do fechamento e o da abertura. Daí nasce o sentido sociológico das fronteiras. Há ímpetos de construção da durabilidade a partir do espaço de fechamento, a durabilidade de um "grupo social", enquanto producente de sua própria entidade. Mas há igualmente ímpetos de destruição a partir do espaço de abertura, a instabilidade das relações do 'de dentro' com o 'de fora', afinal, a criação do contato com o estranho é fonte de captura de novas capacidades agentivas, o que não deixa de ser central, do ponto de vista do coletivo, para a duração do espaço social. O espaço do fechamento que se reflete, que se quer refletir enquanto grupo social, enquanto representação da durabilidade da entidade social, é constituído pela "experimentação domesticada" de uma coletividade ao se fixar como objeto de domesticação, o que implica enfatizar as capacidades agentivas que possam ser requeridas no interior do próprio grupo. O contrário disso é a experimentação insurrecional contra a limitação que o espaço de fechamento promove contra o coletivo enquanto múltiplo, ao reduzi-lo ao poder do grupo. Nos fluxos do real, não há espaço de fechamento ou espaço de abertura, como se fossem realidades sociais dadas lutando entre si pela alternância do estado das coisas, não se trata de um estado de coisas, mas de fluxos e enquanto fluxos, fechamentos e aberturas são atributos das relações de espacialização do socius. Homi Bhabha O território é o lugar do medo. É onde se demarca a terra, uma agrimensura, e onde se faz o terror, um domínio. É o lugar a partir de onde alguém é expulso pelo medo, principalmente, os potenciais inimigos, os que não são identificados como fazendo parte do lado de dentro, e quem não é do lado de dentro, precisa sentir medo diante do território. Um medo que adverte. Um medo que expulsa ou aniquila.