quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Problematizações ou entidades? O que é objeto?

Aprendi com Foucault a pensar o circuito polícia-justiça-prisão e fico muito desconfiando das super-especializações que estão surgindo, criando "estudos policiais", "estudos de justiça criminal" e "estudos prisionais", como nichos acadêmicos estanques uns em relação aos outros. Acho estranha essa separação contraproducente. Rua, bairro, favela, condomínio, shopping, lazer, consumo, crime, polícia, justiça, prisão, do ponto de vista do meu trabalho de campo, são inseparáveis em seu funcionamento. O lance é a problematização e não as entidades transformadas em objetos. Pensando sobre isso nos últimos tempos.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Um trecho de um trabalho de 2001.

Mas, por que buscar clarificar a questão do poder em termos metodológicos e não “puramente” teóricos? De um lado, é preciso ter em mente que, ao longo de uma investigação científica, como afirmava Wittgenstein (1996): fazemos muitas afirmações cujo papel na investigação não compreendemos. Pois nem tudo o que dizemos serve um propósito consciente (...). Os nossos pensamentos seguem rotinas estabelecidas, passamos automaticamente de um pensamento ao outro de acordo com técnicas que aprendemos. E chega então a altura de passar em revista o que dissemos. Fizemos uma série de movimentos que não favorecem o nosso objetivo ou que até o dificultam e agora temos de clarificar filosoficamente os nossos processos de pensamento ( p.97). É neste sentido que afirmo a dimensão metodológica desta reflexão e não no sentido de uma suposta separação entre teoria e prática. “A capacidade de levantar problemas (...) constitui uma das maiores virtudes do cientista (Malinowski, 1978, p.22). Portanto, aproveito a ocasião para tentar dar um passo no processo de construção de um objeto de pesquisa, cujo background etnográfico não será aqui explicitado, mas sempre pressuposto. A construção do objeto “é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas” (Bourdieu, 1998, p.27).

Coisas emaranhadas de poder na vida acadêmica.

Acho muito exagerado certos cultos de personalidade que vão sendo criados por grupos corporados no mundo acadêmico para exaltar figuras como se fossem deuses. A gente sabe que há profissionais no mundo acadêmico que são super brilhantes, mas que recusaram ser objeto desse tipo de adoração. Fazer igreja na academia é um tanto despropositado, não? Os grupos corporados atuando no mundo acadêmico estão exercendo um controle tão fechado sobre o conjunto de referências que são capazes ou permitem manusear na feitura de seus próprios trabalhos que vão morrer por excesso de endogenia. Os novos quadros de alguns desses grupos sequer usam referências que são históricas nas ciências sociais, pois só leem seus orientadores e os dois ou três aliados minguados que eles possuem, e olhe lá se leem isso tudo. As panelinhas em suas socialidades de evitação estão gerando uma fragmentação do saber em compartimentos estanques que não se comunicam. É por isso que celebro estar fora de centros, o desejo de centro é muito ruinoso. Premia na medida em que tolhe! Estar por fora é bem melhor. (Observação: estou escrevendo isso enquanto faço dois pareceres, daí a pontuação). Os indivíduos, produzindo no campo acadêmico, precisam parar de excluir autores pelo fato de não estarem no campo de suas simpatias pessoais ou no arco de suas alianças de poder com que buscam se apropriar do campo institucional. Passou do limite, sinceramente. Temos que saber usar os bons textos dos nossos piores desafetos. Sem essa capacidade de objetivação, o campo se desrealiza. Estou acompanhando casos em que alguém escreveu um artigo e usou uma referência, citando-a como principal, e em outro artigo, que era continuidade do primeiro, a referência caiu, foi suprimida. Fui atrás para saber o que tinha acontecido e alguém me diz: eles brigaram. Que ridículo!

Dicas descontraídas para a vida acadêmica.

Dica para a vida acadêmica: os pesquisadores possuem estilos diferentes, ainda bem. Não confunda o estilo com a verdade, ninguém possui a verdade do caminho a ser seguido. Não sugira para seu orientador que, ao conversar com o professor tal, ele disse que era melhor fazer assim ou assado e não do jeito que o estilo do orientador sugeriu, exceto se o professor que deu a dica estiver na banca de qualificação, aí está convidado e autorizado a intervir. Gente, é melhor mudar de orientador, né, quando alguém não simpatiza ou não confia no estilo de fazer pesquisa do orientador? Simples assim. Muda de orientação. Dica para a vida acadêmica: diante de um orientador de difícil acesso, não fique assediando informalmente outros professores, pedindo orientação informal como forma de compensar o orientador supostamente ausente ou efetivamente ausente. E pior: depois de sugar milhões de dicas do "orientador" informal, não chamá-lo para a banca de qualificação, nem de defesa, e ainda por cima não mencioná-lo nem nos agradecimentos do trabalho final, aí é de lascar o cano, né? Dica para a vida acadêmica: não vá, ao fazer a entrevista de um processo seletivo para a pós-graduação e ao ser perguntado sobre a escolha do programa, dizer que ia tentar fazer não sei onde mas a vida lá está muito cara. Pelo amor de Deus! Minta, diga que ali é o melhor lugar para você desenvolver sua formação. É o mesmo que enviar um convite para alguém dizendo: é que tentei com várias pessoas e não consegui, aí estou entrando em contato com você. Dica para a vida acadêmica: não chegue na sua qualificação com um texto onde você não dialoga com nada, nadica de nada, da produção do seu orientador. Como é que você vai ser orientando de alguém sem dialogar com a produção e o estilo de conhecimento do orientador? A gente que tem que dar essa bronca na qualificação. Evitem isso. Se escolheu ser orientado por alguém, faça o convite logo dizendo que leu a tese da pessoa. Temos que fazer o serviço direito, gente! Dica para a vida acadêmica: não deixe se levar pela ansiedade, não convide alguém para sua banca sem antes ter falado com seu orientador. Na maioria dos casos, o orientador vai vetar. E você que já formulou o convite terá de se fazer de doido, todavia, ninguém esquece ter sido convidado e desconvidado silenciosamente. É um erro estratégico grave fazer isso. Segurar a ansiedade é melhor. Dica para a vida acadêmica: não envie emails para três professores ao mesmo tempo, o mesmo email, perguntando: quem de vocês pode me orientar? Não façam isso, pelo amor de Deus. É mesmo que pedir para ser enterrado vivo. Mais atenção no serviço. Orientador não é sabonete na prateleira do supermercado, orientador também é gente.

domingo, 6 de setembro de 2015

Convergência

Nós não nascemos livres, nascemos assujeitados, todavia, em todo nascimento há a possibilidade da criação de um novo contexto e nisso reside a aventura da liberdade humana como tarefa (esta asserção faz convergir Marx, Nietzsche, Foucault e Hannah Arendt).

Violência natural?

A ideia de que há uma "natureza humana" já é muito discutível e ainda por cima de que ela seria "violenta" é sem base nenhuma. A violência é uma trajetória de aprendizagem. Agressividade humana não é violência. Violência é o ato de nomeação. A base biológica do humano é o amor, segundo as neurociências.

A força do socius

É impressionante como o grupo social a que se pertence exerce um poder sobre seus membros. Às vezes, as pessoas começam a interagir espontaneamente com outras pessoas de fora de seu grupo, a comunicação vai fluindo bem, numa troca legal, interessante, quando, de repente, por inveja, algum membro do grupo de pertencimento dá uma chamada, uma chamada à ordem, ameaçando quem está trocando com o fora, e, quase sempre, as pessoas, com medo de serem retaliadas pelo próprio grupo a que pertencem, resolvem obedecer ao chamado e param de interagir espontaneamente com pessoas de fora. Isto é a origem de todas as guerras! E é só o que acontece, inclusive por aqui. Por isso que o Lévi-Strauss dizia que o antropólogo é uma traidor do próprio grupo, abandona o centro de poder do seu grupo, dirigindo-se para o fora.

A conversação e o devir-humano.

A conversação é o fundamento do devir humano, quando um animal humano se nega a entabular uma conversa com outro animal humano, este ato de negação da conversa é um ato de negação do devir humano. Qualquer ato humano está baseado na emoção, no agir emotivo, emocional, e a emoção é o que carrega o juízo de valor, de modo que as conversações são coordenações entre ações e sentimentos. (nota de leitura, estudando sobre a linguagem humana com Maturana)."El que el amor sea la emoción que funda en el origen de lo humano el goce del conversar que nos caracteriza, hace que tanto nuestro bienestar como nuestro sufrimento dependan de nuestro conversar, y se originen y terminen en él" (Maturana). A linguagem mais antiga dos hominídeos é a linguagem dos sinais. Chimpanzés e gorilas podem se comunicar entre si e com os humanos da espécie homo sapiens sapiens, usando-a, tomando-a como base geral para as trocas de signos. Há três milhões e meio de anos, surge uma nova configuração da situação humana ancestral, trazendo importantes transformações para o sistema de linhagem herdado pelo homo sapiens sapiens até hoje. A origem de uma nova linguagem sobreposta e independente da linguagem de sinais, uma linguagem simbólica, lançará as bases de um novo modo de viver dos humanos, baseado nas seguintes características: a) o ato de coletar, juntando coisas do mesmo tipo; b) o compartilhamento do alimento; c) a cooperação entre animais humanos machos e fêmeas; d) a criação coletiva das crianças a partir do cuidado sob a responsabilidade compartilhada do grupo; e) a sexualidade passa a ser vivenciada como uma sensualidade, o que envolve a descoberta do encontro sexual frontal como fonte de prazer e reconhecimento; f) a vida cotidiana em pequenos grupos com adultos, jovens e crianças, interagindo juntos; g) o ato de conversar, que nasce do entrecruzamento do uso da linguagem e da capacidade de sentir emoções. "Lo que diferencia al linaje homínido de otros linajes de primates es un modo de vida en el que compartir alimentos, con todo lo que esto implica de cercanía, aceptación mutua y coordinaciones de acciones en el pasarse cosas de unos a otros, juega un rol central. Es el modo de vida homínido lo que hace posible el lenguaje, y es el amor, como la emoción que constituye el espacio de acciones en que se da el modo de vivir homínido, la emoción central en la historia evolutiva que nos da origen. El que esto es así, es aparente en el hecho que la mayor parte de las enfermedades humanas, somáticas y psíquicas, pertenencen al ámbito de interferencias con el amo" (Maturana).

Poder comer

Elias Canetti discute a relação entre comer e poder. O mais comer é uma função do mais poder e vice-versa. "Tudo o que se come é objeto do poder". Desejar tornar-se o comedor-mor conecta o processo de digestão ao exercício do poder. O que se esquece, frequentemente, é a sobra, o fedor do lixo e do excremento que se deixa por aí. O desperdício é malcheiroso. A fedentina é a marca inexorável de quem se quer na posição "superior". Uma superioridade da inferioridade. E no caso dos mandados, o excremento é repleto de suas culpas. Adoro o livro Massa e poder, quem não o leu, recomendo-o fortemente. Para meus orientandos e minhas orientandas, não precisa nem dizer que é obrigatório, né? Abraços e um bom sábado de liberdade humana, essa danada, danação de nada.

sábado, 25 de julho de 2015

Vontade de saber

O pensamento crítico é uma paixão. É preciso amor pelo pensamento para realizar discursos críticos livres. Há trabalho do desejo na busca por uma verdade. A escrita é uma prática do eu, contudo, a escrita de si é a negação do narcisismo, pois a escrita de si é a relação com o estranho, uma relação com as formas absolutas e relativas da alteridade, é no campo do Outro, é no Outrem, onde mora, quase na impossibilidade, a inscrição da nossa condição de sujeito na individualidade. O que me interessa é pensar de outra maneira, na relação com o estranho, filosofando no contramovimento e operando com procedimentos de inversão. Uma filosofia crítica como problematização daquilo que nos limita e nos capacita. Até onde podemos e somos capazes, esta é a questão. Precisamos experimentar novas formas de dar conta da própria vida. Novas éticas. Outras morais, morais possíveis. E o discurso crítico livre é fundamental para essa invenção. O discurso livre é a condição da ética. E o discurso livre não precisa ser autorizado pela lei.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A vida integrada pela prisão.

Falar que a vida hoje é uma prisão é mais do que uma metáfora. A lógica de funcionamento da vida social contemporânea é prisional. O desejo difuso de que o encarceramento em massa de "elementos" (categorias de pessoas indesejáveis) que não se encaixam na lógica concentracionária da gestão de espaços de capitalização segundo o programa da oferta liberal, que exige adesão subjetiva ao fazer tudo em condição de precariedade, trocando subserviência por alguma segurança e gratificação que amorteça o risco da queda numa situação de pobreza "atrasada", diferente da pobreza gratificada com fantasias de grupo, como o da "nova classe média", o que tem gerado um efeito de transferência do tipo: "se eu vivo numa lógica concentracionária, os "elementos" saqueadores precisam ser tirados de circulação, simplesmente, precisam ser punidos e punidos". Há um desejo de punição infinita do saqueador (ladrão, assaltante, latrocida), mas há também a estratégia de enxugamento de categorias de pessoas sobrantes, como é o caso do indivíduo jovem atuando no mercado das drogas ilícitas, como fonte de renda mínima para acompanhar o fenômeno desejante da pobreza integrada. O encarceramento massivo não apenas dos saqueadores, mas, principalmente, dos vendedores de drogas, funciona como uma política de gestão de espaços coletivos, afinal, a intervenção na dinâmica do mercado ilícito das drogas, retirando ou injetando mão de obra, possui efeitos sobre os preços de todas as mercadorias envolvidas, incluindo os próprios vendedores das drogas. Há uma percepção social muito difusa de que há grande quantidade de pessoas descartáveis e que o emprego útil para essas pessoas é ser audiência, clientela e usuário de condomínios prisionais privados, que possam gerar lucros, a única maneira de fazer o "elemento" descartável ser produtivo, tornando-se insumo para o sistema prisional empresarial, gerando com isso um efeito de ordem pela retirada de circulação de uma massa indesejada de pessoas, que causam ruídos na vias de comunicação e acesso dos condomínios.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Freud e a proibição da crítica e da discussão.

Os grupos sociais baseiam-se na promoção de crenças que funcionam como verdades a fim de validar seus centros de poder, legitimando as normas que os autorizam a existir como grupos sociais. Os centros de poder dos grupos sociais buscam então eliminar dissensões e banir dissidentes. Sobre isso, Freud escreveu: "A sociedade recusa-se a permitir que essa questão seja ventilada porque tem má-fé sob vários aspectos...A sociedade mantém uma condição de hipocrisia cultural, que está fadada a se fazer acompanhar de um senso de insegurança e uma necessidade de resguardar uma situação inegavelmente precária pela proibição da crítica e da discussão". Poder-se-ia emendar, dizendo que a incitação ao uso de clichês, que gera uma excitação nas pessoas, possui um poder de modelação mais forte do que o da proibição simplesmente, pois o uso permanente do clichê ocupa a energia da intelecção humana, fazendo-a operar em conformidade cognitiva com os gadgets que orientam a economia do sujeito para a lógica do consumo autorreguladora e automobilizadora da experiência de operar com imagens íntimas no sistema de crédito e de circulação do medo e da vergonha, uma mecanismo simultaneamente de promoção de fantasias de grupo com função integradora que, por sua vez, geram o autoderrotismo da falência de um eu sobrecarregado pela ansiedade de status, entre outras coisas.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A crise dos modelos de subjetividade e as ansiedades de reconhecimento no Brasil.

A impressão que eu tenho, e é mero achismo, pois não sou pesquisador do tema, é de que desde 1910 a sociedade brasileira está sendo confrontada pelos dilemas da modernidade. Os primeiros modernismos artísticos e literários fizeram o tema cosmopolita do niilismo e de sua superação adentrar no universo mental e de sentimento dos segmentos letrados das classes médias e médias altas urbanas. De 1910 a 1950, antecipou-se como dilema cultural a transformação de um Brasil rural em um Brasil urbano. 1950 é a década da virada. A população passa a ser predominantemente urbana. A revolução industrial brasileira (1930-1970) é uma outra força estruturante das mudanças mais amplas. Nas décadas de 1970-1980, as questões do niilismo moderno tornam-se mais difusas, a MPB, o teatro, o cinema, a cultura pop, o rock, enfim, há uma massificação do sentimento de que as imagens autoritárias e hierárquicas da ordem social estão sendo abaladas, os sentimentos morais entram em conflito intenso. Todavia, as ideologias políticas das esquerdas tinham um papel de unificação do campo como sendo um campo democrático popular, que tornava possível o convívio entre diferenças movido por um sentimento de pertença à comunidade em transformação. Com a queda do muro de Berlim em 1989 e até 1999, com a revolta de Seattle, os dez anos de sentimento de perda, desmobilizaram muitos segmentos em luta. A ascensão de governos de esquerda partidária ao comando do Estado destruiu pouco a pouco o sentimento de pertença a uma comunidade mais ampla inserida num processo de transformação democrática do país. Isto resultou em fragmentação, isolamento e burocratização da "luta", ou seja, a luta virou um mito político que embala algumas minorias radicais. O grosso da população brasileira está vivenciando o ápice desse conflito moderno onde não há ancoragem possível para critérios de julgamento moral, fazendo do vazio, do sentimento de vazio e da ameaça que este sentimento provoca, alertado pelo medo, uma situação de ambivalência entre paranoia e esquizofrenia. Entre totalidade e fragmentação, ambas provocando dor, receios e as mais diversas aflições psíquicas de um ponto de visa social, a ansiedade de status, ligada às mudanças na estratificação social, está acompanhada de ansiedades quanto às formas subjetivas da personalidade em contexto de indecisão e incerteza, onde as pretensões de absoluto parecem falhar lá onde são mais reafirmadas, sintomaticamente.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

A concepção de pessoa

"Julgo que não se deve essencializar as pessoas, não devemos tomá-las como 'single malt culture' como se diz dos whiskies" (Michael Herzfeld). Precisamos aprender a lidar com narrativas, discursos e retóricas de pessoas híbridas, lembrando que a própria concepção nativa de pessoa na troca de condição com a do universo de origem do antropólogo é a problematização que orienta etnograficamente todo o processo de investigação.

domingo, 31 de maio de 2015

O real é confuso, um universo escancarado.

O real é desagradável. É confuso. É caótico. É fluxo. O pensamento funciona no confronto com o real, e a função do real é um modo de estabilização dos fluxos no quadro de relações sociais. A perda da função do real pode levar aos mais diversos delírios. O isolamento, o fechamento e a impotência são sintomas da atomização que se realiza pelo afastamento que é uma defecção diante de uma atitude ativa de dar forma à confusão, a confusão que grassa no universo existente, um universo escancarado.

O trabalho de dominação e o controle do discurso.

O trabalho de dominação passa pelo controle do discurso na forma da opinião pública, todavia, o fato da opinião pública permanecer um fenômeno difuso, fragmentário e contraditório nas suas formas de atuação é revelador de como não se pode tomar a opinião pública como se ela fosse uma entidade independente do seu modo simbólico de produção e recepção de sentido no contexto de comunidades em luta.

Um quiproquó.

Quando o que está em jogo é o sentido de existência da própria coletividade, mudanças nas condições materiais de existência não são capazes por si só de infletir a direção da luta simbólica. Isto reforça a ideia de que as formas de opinião social não refletem diretamente posições da estrutura socioeconômica. No Brasil, hoje, o problema central da luta política é o problema da boa vida, a significação e os acessos da boa vida, de quem pode ou não compartilhar da boa vida, de quem define ou não o que seja uma boa vida. É um quiproquó.

O direito à existência

Estamos enredados em uma cruel armadilha, nesses tempos em que nossos perfis são postos em exposição na lógica das redes sociais, para controle social em rede, e ninguém parece escapar de ser alvo da armadilha e de também prepará-la para o outro. Consiste no seguinte a armadilha: julgar o caráter de alguém por um detalhe aparente e superficial, que permitiria uma leitura da psicologia de profundeza do eu. É nesse julgamento peremptório do caráter de alguém, de modo projetivo, onde necessidades projetivas impregnam a percepção negativa do outro, que algumas categorias de pessoas são rotuladas como não tendo direito à existência.

Campo de possibilidades para o saber

Música, poesia e espontaneidade humana. Amor, generosidade e igualdade humana. Conhecimento, curiosidade e perfectibilidade humana. Humildade, diferença e tolerância humana. Sentimento, paixão e corporalidade humana. Amizade, simetria e coletividade humana. Matéria, energia e heterogeneidade humana. Individualidade, reflexividade e pensamento humano.

Opinião pública não existe

O trabalho de dominação passa pelo controle do discurso na forma da opinião pública, todavia, o fato da opinião pública permanecer um fenômeno difuso, fragmentário e contraditório nas suas formas de atuação é revelador de como não se pode tomar a opinião pública como se ela fosse uma entidade independente do seu modo simbólico de produção e recepção de sentido no contexto de comunidades em luta.

Brubaker

A própria teoria é um habitus. As apropriações práticas de ferramentas de pensamento, os próprios métodos de pensar, o uso dos conceitos, os esquemas de visão sociológica, enfim, um campo de práticas a que se liga uma disposição sociológica. Todavia, não se pode esquecer da ambivalência epistemológica que carrega o habitus científico (nota de leitura, ajuda memória para a aula, se a gente não anota, a gente esquece).

Socioanálise e psicanálise.

A relação entre socioanálise e psicanálise me interessa cada vez mais. Não seria incorreto, a meu ver, dizer que Bourdieu, Giddens e Elias são freudianos, cada um a seu modo. Três sociólogos amarrados ao campo da escuta analítica das relações sociais. A escuta da dimensão inconsciente das escolhas, do exercício do poder e da relação do eu com a camada nós. Mesmo a reflexividade de um self atuante emerge do campo social dos desejos inconscientes. Uma hipótese de leitura. O método: de um lado, uma forma ativa e atenta de escuta, disponibilidade concentrada para compreender a pessoa do interlocutor, respeito pela singularidade de cada caso particular, entendimento da linguagem, entrada nos pontos de vista, nos sentimentos e nas formas de pensamento do interlocutor; de outro, a busca de conhecimentos sobre as condições objetivas comuns à categoria de pessoas a que pertence o interlocutor; e também favorecer ao longo da entrevista ou conversação a intensidade expressiva dos relatos de experiência e das reflexões feitas pelo próprio interlocutor sobre seu universo de pertencimento (cf. Bourdieu).

O lugar social

O lugar social opera com a linguagem do pertencimento. O lugar é o lugar dos pertencimentos, o lugar da pessoa. A própria pessoa é o lugar. O lugar da fala, do desejo, da expressividade simbólica, o lugar da privação e das respostas imaginárias a ela, o lugar das fantasias, o lugar absoluto, que é o corpo, o lugar fora de lugar, que é também o corpo. O conceito de lugar é sociologicamente central. O de entre-lugares também. O controle social é o controle público da fala que opera a partir do lugar, refazendo-o a cada dizer.

Crime como expressividade

Uma questão tem me intrigado. Se a criminalidade é uma produção social e se nas concepções da tradição romana e também da tradição judaico-cristã a fundação do Estado está baseada num crime primordial, por que então os crimes institucionais estão sendo tratados como crimes de personalidade? Outra questão tem me intrigado também. Os termos em que se organiza o discurso do crime, tanto no universo de ilegalismos populares como no dos ilegalismos dominantes, são cada vez mais definidos em função de um campo semântico centrado na noção de "amizade". Tanto o andar de baixo quanto o andar de cima da estrutura criminal brasileira tem recorrido a metáforas de parentesco e afinidade para se enunciar: "irmão", "amigo", "família", "parceiro" etc. A questão da confiança e da amizade faz com que o crime se expresse como figuras representativas de personalidades coletivas. O crime é uma expressividade simbólica também. É um modo de relatar as relações sociais. Ademais, as atividades criminais geram novas classes proprietárias, o crime é a revolta do destituído no desejo da propriedade e do mando, o crime no universo de ilegalismos populares. Mas o raciocínio também é válido para os já proprietários que, no crime, no universo dos ilegalismos dominantes, aumentam fortunas, poderes e constroem novas respeitabilidades, a respeitabilidade do cabra temido, que possui representantes na estrutura do Estado. Um fato muito antigo na sociedade brasileira.

sábado, 30 de maio de 2015

Hipótese para uma teoria das condutas estratégicas.

Na análise dos custos de oportunidade, na perspectiva da escolha na margem, a teoria da ação racional precisaria estar funcionando no quadro de uma teoria mais abrangente da ação simbólica. Afinal, projeções e fantasias inconscientes, bem como expressividades simbólicas de pertencimentos sociais são investimentos que fazem do desejo um mecanismo imediatamente sociológico, algo que não vem antes, nem depois, pois máquinas desejantes e máquinas sociais estão em pressuposição recíproca.

Fantasias coletivas e análise social

Tenho me interessado pelo modo como fantasias de desejo de coletivos orientadas para os mais diversos objetos de consumo cultural podem desconectar pertencimentos ligados aos autointeresses de grupos de pessoas, fazendo com que os indivíduos mergulhem no investimento nas figuras subjetivas imaginárias, de uma comunidade de fantasia, em detrimento de vínculos sociais efetivados no contexto concreto da interação social onde se negocia o sentido da vida social. Em vez de tomadas de posição frente ao conjunto de interesses do grupo de pertencimento, os indivíduos projetam-se no fechamento de um desejo narcísico. E assim as percepções sociais da realidade social se desconectam de suas bases efetivas, gerando posições subjetivas de impotência e isolamento. Fantasias de desejo possuem nexo com circuitos de frustrações, como discute Freud. As percepções sociais do que seja a realidade da privação na vida real são um fonte decisiva para a compreensão da estruturação da vida coletiva. Como ensinava Robert Redfield, a análise da estrutura social é a análise das expectativas sociais. O que se pode esperar? O que se realiza entre as circunstâncias restritivas que incitam em um sentido e não em outro o funcionamento das capacidades agentivas? Neste abismo entre circunstâncias e sonhos de realização, situa-se o problema da identidade social, como recurso de identificação que estabiliza o fluxo dos desejos, crenças no confronto com o gozo ilimitado.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Compreensão, conhecimento e poder.

Compreensão não é o mesmo que conhecimento. Conhecimento sem compreensão é um conhecimento que esteriliza a capacidade crítica e reflexiva. Existem conhecimentos domesticados orientados para a gestão da ordem e existem conhecimentos selvagens orientados para o fora da ordem. O pensar é fora da ordem. Não é à toa que o controle político sobre a atividade do pensamento é permanente. Apesar do controle político do pensar, o pensar sempre escapa, pois sua qualidade própria é a fuga (no sentido musical) e os controladores do pensar, por falta de afinidade com a própria experiência do pensamento, não entendem as modulações da fuga que caracterizam o pensar humano. O pensar humano não é um objeto fácil para o conhecimento domesticado da ordem. O pensamento humano está fora do controle.

Pensar está fora de controle.

Compreensão não é o mesmo que conhecimento. Conhecimento sem compreensão é um conhecimento que esteriliza a capacidade crítica e reflexiva. Existem conhecimentos domesticados orientados para a gestão da ordem e existem conhecimentos selvagens orientados para o fora da ordem. O pensar é fora da ordem. Não é à toa que o controle político sobre a atividade do pensamento é permanente. Apesar do controle político do pensar, o pensar sempre escapa, pois sua qualidade própria é a fuga (no sentido musical) e os controladores do pensar, por falta de afinidade com a própria experiência do pensamento, não entendem as modulações da fuga que caracterizam o pensar humano. O pensar humano não é um objeto fácil para o conhecimento domesticado da ordem. O pensamento humano está fora do controle.

Mas, afinal, qual é a solução?

Não há solução sem esforço de compreensão. A visão simplista sobre os problemas sociais faz parte do problema e não da solução. Quando se rejeita a atitude de pesquisa, a busca de um pensar crítico e reflexivo, um pensar de modo complexo a complexidade do mundo social, baseada em pesquisas empíricas sistemáticas, quando se rejeita isso, como se fosse "perda de tempo", como se fazer pesquisas a fim de ampliar o entendimento fosse falta de "realismo" ou de "pragmatismo" da vida acadêmica, gostaria de lhes dizer que isso faz parte do problema. A rejeição da pesquisa sistemática, teoricamente bem orientada, é um grave problema de falta de percepção do lugar que o saber ocupa no processo de transformação da realidade e das visões açodadas pelo imediatismo do "qual é a solução", que, na prática, é uma adesão fácil aos repertórios dados, que são parte do problema, uma vez que estão cegos para a elaboração de novos campos de perguntas, sem o que não há possibilidade de novas respostas ou "soluções", que não sejam o mais do mesmo. Sinto muito, mas sem pesquisa séria, coletiva, continuada, sistemática, não há solução para a ansiedade do "qual é a solução", ansiedade no fundo expressa o sentimento de pessimistas contumazes. No fundo, quando se cobra soluções imediatas para problemas históricos e complexos, essa cobrança ou é fruto do sentimento de impotência ou da mera ignorância, simplesmente. Um campo de soluções transformadoras não é algo que se possa desenvolver sem trabalho, como num passe de mágica. A demanda por solução rápida, imediata e sem questionamento de problemas é uma demanda por magia, por soluções mágicas, é uma projeção fantasiosa de ansiedades e angústias. E, ademais, é uma visão que não consegue perceber que solução é um bem muito raro, posto que exige muita atenção, muito trabalho, muita massa crítica. Se não há soluções, pode-se afirmar que a coletividade está trabalhando muito pouco para forjá-las. A solução é o fruto do trabalho. E não estou falando do "vamos arregaçar as mangas e fazer", pois, afinal, só somos capazes de fazer o que está informado pelo campo de problemas que alcançamos. Se vamos arregaçar as mangas e fazer de acordo com o que já conhecemos, muito provavelmente vamos reproduzir o mais do mesmo. Se colocamos uma equipe com pessoas muito práticas, muito pragmáticas, juntas para resolver problemas, elas em geral apresentam as mesmas soluções que já experimentaram antes, que é justamente o que faz parte do problema. Minha aposta é na imaginação criadora de um novo campo de problemas, para mim, isso é a solução mais pragmática, o uso da imaginação criadora, do pensamento crítico e reflexivo, da pesquisa empírica sistemática e da construção coletiva de saberes orientados para a transformação de velhos problemas e velhas soluções. Novas soluções exigem novas problematizações.

domingo, 24 de maio de 2015

O conceito de realidade: uma reflexão epistemológica.

É importante não esquecer que, do ponto de vista das ciências, a realidade é um conceito. Sem o conceito de realidade com o qual se opera, não há apreensão de fluxos empíricos e de entidades empíricas que tenham sido resultantes de alguma força inercial ou de corte que as estabiliza de modo dinâmico. A realidade é uma modelização teórica baseada na construção de fatos científicos no confronto com o universo dos eventos reais. Ocorre que os eventos reais tornam-se pesquisáveis quando diferentes níveis de integração criam uma escala de menor ou maior complexidade para cada nível da realidade empírica, que nunca é dada, apenas pressuposta como dada. A própria escala é um instrumento heurístico. E a natureza do real é problemática. Se a natureza do real não fosse problemática e se, igualmente, não fosse problemático o processo de compreensão do real, não haveria vida num sentido biológico, antropológico e sociológico.

sábado, 23 de maio de 2015

CONTRA O MÉTODO

Há uma força nos discursos, tanto de eficácia simbólica quanto de eficácia performativa, que atua como um poder causal na construção da vida coletiva, o poder causal dos discursos, levando em consideração, é claro, que se opera na multicausalidade e com sistemas de causação circular, quando se trata do mundo social. E o sistema é aberto, a-centrado, reticular, segmentar, transformacional, portanto, conectado a um campo de historicidade que o produz e é produzido por ele num regime de pressuposição recíproca.

FORMAS DE CONSCIÊNCIA E PRODUÇÃO DA DIFERENÇA NA VIDA COLETIVA

As formas da consciência social não refletem as condições materiais de existência. Segundo Marx, as formas da consciência social são portadoras de uma complexidade que envolve um abismo entre circunstâncias que determinam e capacidades agentivas de criação de novos contextos, o que o autor chama de práxis. A concepção praxiológica do devir histórico, para Marx, não pode prescindir jamais da ideia segundo a qual as formas da organização das atividades sociais com suas linguagens operam como forças produtivas, de modo que não há relação extrínseca entre relações sociais de produção e desenvolvimento das forças produtivas, uma vez que a organização social humana é a principal força de produção e não o seu corolário, como asseveram as leituras reducionistas do materialismo vulgar. A superação da dicotomia materialismo e idealismo foi a grande tarefa a que se impôs o sociólogo Max Weber, que considerava Marx e Nietzsche os dois pontos de partida obrigatórios da análise social moderna, do mesmo modo que Hannah Arendt, na sua crítica a Marx, afirma que este é o inventor do método sociológico.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

A vida social na forma de condomínio.

A hipótese que penso ser mais interessante para adentrar no universo de transformações estruturais do capitalismo contemporâneo está baseada na ideia segundo a qual o problema da ordem social está sendo resolvido em torno da categoria "condomínio", a vida social em condomínios. São constelações de condomínios interconectas por mecanismos de mercado, onde a prestação de serviço e os fluxos de bens relacionados às trocas entre condomínios privados atua como forte fator de exclusão relacional. A teoria do capital humano, em suas diversas versões, é um dos esquemas mais atuante na construção de percepções de mundo que põem os desafios públicos em suspensão na medida em que os problemas sociais são concebidos para funcionar cada vez mais no âmbito de arranjos privados de proteção, vigilância e controle das vias de acesso que interconectam hierarquicamente, segundo critérios de classe, raça e gênero, os condomínios e as constelações de condomínios, adotando como princípio de organização geral a desigualdade de capitais como forma de atuação de um sistema aberto segmentar reticular. A forma da vida social como Estado, a vida social estatal, é rivalizada pela forma condominial da vida social cada vez mais privatizada, ou seja, privada da relação de simetrização com formas de alteridade. A hierarquia de condomínios privados, celebrada contratualmente sem passar pelo reconhecimento do Estado como fonte do direito, é um dos fenômenos sociais mais relevantes que emergem em várias configurações socioespaciais distribuídas no plano mundial. A hipótese que penso ser mais interessante para adentrar no universo de transformações estruturais do capitalismo contemporâneo está baseada na ideia segundo a qual o problema da ordem social está sendo resolvido em torno da categoria "condomínio", a vida social em condomínios. São constelações de condomínios interconectas por mecanismos de mercado, onde a prestação de serviço e os fluxos de bens relacionados às trocas entre condomínios privados atua como forte fator de exclusão relacional. A teoria do capital humano, em suas diversas versões, é um dos esquemas mais atuante na construção de percepções de mundo que põem os desafios públicos em suspensão na medida em que os problemas sociais são concebidos para funcionar cada vez mais no âmbito de arranjos privados de proteção, vigilância e controle das vias de acesso que interconectam hierarquicamente, segundo critérios de classe, raça e gênero, os condomínios e as constelações de condomínios, adotando como princípio de organização geral a desigualdade de capitais como forma de atuação de um sistema aberto segmentar reticular. A forma da vida social como Estado, a vida social estatal, é rivalizada pela forma condominial da vida social cada vez mais privatizada, ou seja, privada da relação de simetrização com formas de alteridade. A hierarquia de condomínios privados, celebrada contratualmente sem passar pelo reconhecimento do Estado como fonte do direito, é um dos fenômenos sociais mais relevantes que emergem em várias configurações socioespaciais distribuídas no plano mundial. Além da Cidade de muros, da Teresa Caldeira, que inaugura várias discussões, o projeto de pesquisa da Cristina Patriota, intitulado Proliferação Global de Áreas Residenciais Muradas, é interessantíssimo. E há muito mais literatura boa sobre isso para quem tem interesse no tema.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Desejo, gozo e corpo: notas de leitura.

Não há experiência humana sem desejo revelando-se no inconsciente. Não há desejo sem sua emergência na linguagem. A linguagem inconsciente. A enunciação na relação de fala, na sua gagueira, nos seus tropeços. No campo da linguagem, a fala como desejo do Outro. Mas como é possível um discurso sem palavras? O sintoma não pode ser apenas analisado como o lugar de uma incapacidade. O sintoma possui uma dimensão problemática que tange a possibilidade do exercício da imaginação criadora, sem o que não há novos contextos. Em vez de uma ordem simbólica excessiva, que reduz a contingência da fala, pensar os modos de gozo na relação com o corpo, a linguagem e o saber. Que tipo de impasse revela o gozo? Qual o lugar de dominância do gozo na estrutura das relações de fala ou das relações como estrutura? Quais são as maneiras de lidar com o gozo? Como superar o desejo de poder no modo de lidar com o gozo? O corpo sofre perturbações causadas pelo gozo. Os outros apenas podem nos estimular, mas não nos satisfazem, pois há um ir além na direção da superação da falta ou de sua anulação e isso nos faz adentrar num modo de gozo excessivo que só pode ser estabilizado pela linguagem. O desejo é uma forma para a fluidez do gozo e sem o corte desejante não há economia do gozo. O desejo pode ser pensado como uma atividade. É uma forma de fazer. Há um trabalho do desejo. Trabalhar o desejo como forma de relação com o prazer e a evitação do desprazer. O desejo como uma relação com o gozo, o desejo como performance, como ritual e erotização liberada pela forma que corta o fluxo do gozo ilimitado. O corpo aprisiona e incita a uma relação com a morte. A afirmação da diferença é o principal objeto de controle social. Como então pensar os corpos como heterotopias, como corpos em fuga (no sentido musical)? Lembrei do livro que Samuel Beckett escreveu sobre Proust. As modulações do eu. As modulações musicais do eu.

Sociabilidade, lazer e Rousseau em Sennet.

As pessoas quando tentam agradar umas às outras estão jogando, investindo em suas reputações à revelia do cultivo individual da virtude, estão no jogo incessante do agravo e do agraciamento, na busca de participar com sua imagem de personalidade, com seu perfil, do tipo de circulação que o capital excedente torna possível na vida social da metrópole. Fama, reconhecimento, reputação e validação para os modelos de comportamento estilizados adotados para agradar aos outros nos jogos de poder, prestígio e influência. E nesse jogo frívolo, de futilidade em futilidade, os seres humanos perdem-se a si mesmos no infinito tédio da dependência mútua sem obrigação mútua que caracteriza a vida burguesa no universo do lazer pelo lazer.

domingo, 12 de abril de 2015

Ética, exercício e método.

Em termos éticos, o único desafio é obliterar a conexão entre conhecimento por totalização (paranoia) e pensamento da eticidade humana. Este último é an-arché, fora da ordem e irredutível a qualquer cognitivismo. Em termos de exercício de pensamento, a única tarefa válida é escrever de novo, reiteradamente, o que já foi escrito: repetição e diferença. Em termos de método, o único método é reinventar o método para cada caso, pois, no fundo, não há o método.

A generalidade do singular.

O único é paradoxalmente múltiplo, é compósito. Uma multiplicidade sem unidade prévia. A unificação é um mecanismo político. A centralização é uma mecanismo de poder político. Mas pensar não é uma forma de generalizar? Sim, certamente, porém é preciso decidir sobre que tipo de generalidade se busca pensar. Há vários modos de generalidade. A generalidade mais interessante, a meu ver, é a generalidade do singular. Sem que se desemboque numa singularidade totalizante, no sentido dialético hegeliano. Uma singularidade que emerge na rede de relações.

A dúvida radical. Nenhum credo.

Nenhum credo é capaz de satisfazer a busca pelo sentido. Qualquer credo narcotiza o sentido da busca, ele a domestica. Todavia, para quem busca pelo sentido no modo selvagem, apenas o pensamento desafia, esse inimigo de todos os credos e que é por si mesmo incapaz de gerar um novo credo. Entre a comodidade narcótica do credo e a atividade fora da ordem do pensamento, não conto pipocas, fico desbragadamente com a reflexão sobre o sem sentido e a falta de meta transcendente ou imanente da existência.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Sobre a história

Sem sentido e sem fim. Não há lógica na história, exceto aquela que os seres humanos lhe impõem de modo paranoico. Processos mentais de totalização, a forma de atuação da paranoia, impõem a todo vapor uma necessidade histórica onde não há nada, onde não há absoluto, apenas absurdo. A essência do humano é o nada. Não há absoluto na história. Só há a priori histórico.

Sobre a liberdade.

O não domínio é uma realidade possível. A dominação não é um atributo universal de tudo aquilo que é. Há vida social sem domínio. Isonomia é uma vida sem domínio. Ocorre que a pluralidade é irredutível. Como então viver em situação concreta de isonomia? Uma resposta possível é fazer uma distinção entre diferenças e desigualdades. Estas são mecanismos sociológicos de constituição do domínio. Aquelas são relações sociais criadoras de novas relações, de novos contextos. Só há então uma causa revolucionária, apenas um objetivo na revolução: a causa da liberdade contra a tirania. Contudo, não há isonomia ampla sem processo de libertação, não há liberdade sem libertação em relação às condições reais e imaginárias que subjugam e assujeitam. O que não quer dizer que a libertação seja causa suficiente da liberdade. Em alguns casos, a libertação da miséria e da pobreza e do sistema de opressões ligado a elas não leva à liberdade. A liberdade não é o apanágio das "sociedades livres", nem a consequência sórdida de um regime de terror. A liberdade é, em primeiro lugar, a prevalência da espontaneidade sobre e contra o condicionamento. Em segundo lugar, a afirmação do campo de decisão humano, baseado no pensamento. Em terceiro lugar, a liberdade para criar novos contextos. Em quarto lugar, a liberdade de dizer não, o direito à revolta, à rebelião e à revolução, um direito relacional, sem princípio metafísico (seja Deus ou a Natureza). Em quinto lugar, a liberdade é a participação na discussão e na decisão sobre o campo das regras de ação cooperativa, de ação coletiva em face da responsabilidade diante da riqueza coletiva. Em sexto lugar, é o direito de revolta individual contra as opressões das regras coletivas. É contra o individualismo e contra o coletivismo. Em sétimo, a liberdade não é uma metafísica, mas uma conquista. A conquista, como processo de libertação, é uma condição necessária para a isonomia em bases reais. Uma isonomia meramente formal, no âmbito do grupo interpares fechado e excludente, desconsidera que a relação entre ricos e pobres é histórica, não natural. A luta pela liberdade não se confunde com o dinheiro pelo dinheiro, a arte pela arte, a guerra pela guerra. A luta pela liberdade não cabe no enquadramento das instituições sociais e políticas. A luta pela liberdade é uma pluralidade de práticas de resistência, de afirmação de diferença intensiva, para a constituição de alianças laterais contra a emergência do Estado.

Sobre a tarefa do pensamento crítico

A tarefa principal é a contestação sem tréguas do sistema de dominação. Nenhuma dominação, nenhuma opressão e nenhum regime de exploração do ser humano pelo ser humano, pode permanecer inconteste. Não há dominação legítima. A crença na legitimidade da dominação é uma função da própria dominação. A crença legitimadora da dominação exerce uma eficácia performativa sobre o funcionamento dos próprios mecanismos de dominação. Não há natureza humana e não há dominação natural. Toda dominação é uma história de dominação. Depende do emprego de meios de destruição, de violência e de mistificação do sentido e do valor das elites sociais, culturais e políticas que compõem o campo da classe dominante, o campo do poder, no sistema da dominação. O exercício do pensamento como base crítica para o campo de decisão de indivíduos e coletividades em luta por emancipação é a tarefa propriamente dita de transformação social. Não há transformação social sem horizonte de sentido capaz de imaginar o sentido da transformação social. A imaginação criadora precisa ser capaz de desconstruir os mecanismos de controle que fazem da imaginação, uma imaginação reprodutora. E a deturpação desta na forma de clichês é o alvo certeiro da atividade intelectual e do agir críticos. Desconstruir o clichê para fazer nascer possibilidades imaginativas do novo mundo, da fundação do novo mundo.

Sobre os fatos.

Os fatos não existem, pois os fatos são teimosos. Os fatos resistem à veleidade humana de descrever fatos como fatos, como se os fatos existissem independentemente dos atos de percepção dos fatos. Os fatos não existem, portanto, como entidades independentes da cognição e do pensamento humanos. Em qualquer apreensão humana dos fatos, há uma teoria subjacente aos fatos, que faz com que os fatos só possam ser pensados e conhecidos através de fatos discursivos. E os fatos discursivos são inseparáveis dos fatos. Há uma pressuposição recíproca entre fatos discursivos e os fatos. O acesso humano ao fato é a construção do fato. O fato não é dado. E até os dados são produzidos. No contexto de produção dos dados, os dados são tratados como objetivos. Se há uma objetividade, é a objetividade dos dados. Mas a objetividade dos dados é uma questão de método, ou seja, de modo de caminhar no trato do dado, que não é simplesmente coletado, uma vez que a coleta é uma ferramenta seletiva e teoricamente orientada. Os fatos científicos são construídos, orientados pelas interpretações teóricas implícitas ou explícitas, sobre a base metodológica da produção de dados, como o campo de objetividade (positividade) para a emergência de um campo de saber correlato, que lhe é coetâneo. A racionalidade não é universal, é histórica, guarda uma pretensão de universalização, todavia, os processos de universalização estão inseridos no campo da historicidade. O transcendental, para não falar sequer da transcendência, que é uma entidade abstrata tratada como se fosse concreta, uma hipostasia do real, uma entidade pseudoconcreta, reificada, enfim, o transcendental é uma forma transcontextual de agir humano. A variação empírica contínua é confrontada pelo pensamento que lhe impõe fixidez, e a fixidez do fluxo gera a estabilização meramente abstrata do fluxo. O fluxo propriamente dito, que é inacessível ao pensamento conceitual, afinal, o fluxo é sem essência, é a pura confusão, o caos, a força destruidora de qualquer estabilidade pretendida. O transcendental é o deslocamento de uma forma de racionalidade, de um contexto a outro, gerando pretensão de universalização. É o pulo do gato.

domingo, 8 de março de 2015

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Obra e tempo

"a relação entre uma obra e seu tempo não é a do mero reflexo intelectual de realidades sociais dadas" (Marilena Chauí, Primeira filosofia, p.61).

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Poder e estrutura.

Do mesmo modo que o poder não é apenas aquilo que interdita, que barra, mas também aquilo que capacita (ver Giddens por exemplo), a estrutura não é apenas obstáculo para a mudança, mas também sustentáculo dela (ver Braudel por exemplo).