quarta-feira, 26 de abril de 2017

Teoria é também política.

Para quem ainda não leu Contrafogos, de Pierre Bourdieu, fica a dica, pois representa o modo como um dos mais importantes teóricos das ciências sociais faz da teoria uma prática crítica dos discursos neoliberais que investem contra as coletividades e seus direitos. Uma leitura imprescindível para esse momento, pois muitas das estratégias usadas na França e que são analisadas criticamente por Bourdieu estão sendo usadas aqui no BR no atual contexto. Teoria é também política.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Teoria do enquadramento.

O modo como Judith Butler, apoiando-se em Goffman e Derrida, repensa a teoria sociológica dos enquadramentos é uma das contribuições mais interessantes no universo dos debates contemporâneos. No próximo semestre, vou ministrar a disciplina Tópicos Avançados em Teoria Sociológica, para o doutorado, vou trabalhar com Bourdieu e Giddens. Mas de um próxima vez, pretendo discutir Foucault, Honneth e Butler. Essa movimentação teórica, incluindo Arendt, Elias, Habermas, Adorno, Sennett, Bauman, Goffman, Becker, Agamben, tornou-se o caldo a partir do qual podemos fazer apropriações críticas que desloquem num sentido pós-colonial, pós-social e pós-feminista o sentido da reflexão teórica desde o sul. Butler me parece conduzir muito bem essa tarefa de crítica e deslocamento.

Retomada da questão do parentesco.

O texto que publiquei em 2015 sobre a questão do poder na antropologia foi um modo de preparar o terreno para as novas questões. Afinal, é a partir das considerações da antropologia sobre família e parentesco que se pode problematizar o modo como as relações de poder são inerentes ao universo das relações sociais.

Liberdade, justiça e metafísica.

Quando se luta por liberdade, justiça ou igualdade, há sempre o risco de impor uma metafísica com tais significantes. Afinal, liberdade, justiça e igualdade estão também encarnados em regimes históricos concretos com suas normatividades sociais estabelecidas. Laclau e Mouffe sugerem que tratemos tais termos como significantes vazios. A luta por hegemonia é a luta pela significação histórica concreta em torno de tais significantes, que são sempre flutuantes e ambíguos, pois estão em disputa.

O sujeito livre

Adoraria um dia poder fazer uma anarcogenealogia do sujeito livre que nasceu não livre. O tema da liberdade é o tema por excelência que diz respeito ao despertar de um corpo que não está fechado em suas condições de produção. A defasagem entre a sujeição e a recusa ativa da identidade social atribuída como forma de subjetivação pelos enquadramentos da normatividade social existente é a condição da conquista da liberdade, mas não uma condição suficiente. Mas há um problema seríssimo em toda a abordagem de Foucault. Ela não permite discursos que totalizam. Foucault é um filósofo da dispersão. Para alguns, isso é um xingamento, para outros, um elogio. Eis o problema. "Não é, pois, o poder mas o sujeito que constitui o tema geral de minhas pesquisas" (Michel Foucault).

O eu, o outro, a identidade e a cultura.

As ideias de Eu, Outro, Sujeito, Identidade e Cultura ainda dão conta das transformações nos processos de formação de sujeitos na vida contemporânea? Butler, dialogando com Bhatt, propõe essa instigante questão.

Não há códigos estáveis...

Não há um código estável que possa ser usado para perceber de modo unívoco o sentido do comportamento social. Ou seja, o comportamento social não é autoevidente. Uma pessoa pode agir segundo os mais rígidos padrões morais, na sua intencionalidade, e ser percebida como licenciosa pelo público anônimo. O agir em público gera um anonimato do sentido da ação que escapa ao controle do ator (estou misturando teoricamente Richard Sennett com Hannah Arendt).

Tocqueville e Marx

Tocqueville com Marx e Marx com Tocqueville. São duas tradições de pensamento que correram paralelamente, como adversárias, todavia, elas precisam se encontrar. Por quê? Segundo Sennett, a ortodoxia marxista (não Marx) criou uma teoria da vítima pura, um modo ideológico de perceber as vítimas do sistema, o que facilita na possibilidade de sua redenção pelo partido. "Em lugar de uma criatura cujas próprias propensões para a autodestruição e a falta de expressão eram reforçadas por um sistema destrutivo", que é uma visão que está simultaneamente em Tocqueville e Marx, os dois grandes intérpretes da grande transformação. Dois analistas imprescindíveis.

Pessoas em fluxos

O ser humano não está garantido de uma vez por todas naquilo que estrutura o seu ser. Como diz o filósofo, a essência do humano é o nada. O humano está em fluxo, as formas do humano são modos de dar fixidez ao fluxo. Só há pessoa em fluxo, seja ela estabilizada de modo heterônomo ou de modo relativamente autônomo. Para quem leva a sério a tarefa de construção de autonomia relativa no contexto mais amplo das teias de interdependência nas quais somos produzidos subjetivamente, o desafio é realizar com afinco, atenção, dedicação, reflexividade, criticidade, o movimento de trabalho do desejo, pois sem trabalho do desejo resta apenas a agonia desesperadora do gozo ilimitado, e o contramovimento do desejo que se liberta dos imperativos do trabalho do desejo, que é também uma tarefa, e fugindo das formas neuróticas e ideológicas de definir o mundo, põe-se a tecê-lo com as próprias mãos num agir infinito de mergulho no abismo, um mergulho para o alto.

Fazer ciência social ou fazer a ordem social?

Para Bourdieu, é preciso escolher entre fazer ciência social ou fazer a ordem social. Ele diz isso quase literalmente. Fiquei estupefato com a radicalidade do pensamento dele. Ele afirma, ademais, que a ciência social só pode estar na posição do dominado. Só pode se articular a partir de uma posição de dominado. Depois de anos, estudando esse camponês sociólogo, cuja trajetória me lembra muito a de Florestan Fernandes no Brasil, fiquei muito surpreendido. Como pode que um autor como Bourdieu seja cultuado no Brasil pelas elites? (essa pergunta não é inédita, há vários estudiosos que se questionam sobre isso, como um pensamento radical e de base pode virar ideologia nas ciências sociais brasileiras). Depois desenvolvo esse argumento com mais palavras.

Discutir teoria

Discutir o lugar da teoria no processo de produção do conhecimento socioantropológico é uma tarefa permanente para os debates acadêmicos. Contudo, desde o início, trata-se de uma atividade que exige uma série de tomadas de posição no campo intelectual, tanto do ponto de vista teórico, quanto do metateórico. Os pressupostos podem ficar implícitos, e, nesse caso, pouco interesse se costuma dedicar à discussão proposta aqui. Tudo se passa como se a ilusão positivista funcionasse como um narcótico que impede a emergência do debate. Quais seriam as coordenadas principais hoje para se localizar nesse desafio? Como se poderia imaginar conceitualmente o lugar da teoria no contexto da pesquisa hoje?

O ensino da teoria como luta contra o racismo da inteligência.

Quando dizem que discutir teoria não é uma tarefa para qualquer um, mas, apenas, para uns poucos iluminados (em geral, homens brancos de classe média ou da alta elite), e que não se deve, portanto, forçar estudantes que não façam parte dessas elites a estudar teoria, quer se queira ou não, está-se a reforçar aquilo que Pierre Bourdieu chama de racismo da inteligência. Como professor, recuso-me a aceitar como natural que apenas estudantes homens, brancos, que estudaram em escolas particulares de elite, possam ser "naturalmente" submetidos às "pressões coercitivas" das demandas disciplinares por uma formação teórica de alto impacto. A ideia paternalista de que estudantes fora do perfil acima não sejam "cobrados" como se fossem "capazes" de acompanhar debates teóricos que estão reservados para os "iluminados" esconde uma atitude altamente racista e elitista. A minha insistência em ofertar ensino-aprendizagem em teoria social para quem desejar se engajar nisso é interpretada justamente como elitismo de minha parte. Eu discordo. Seria elitismo se eu não estivesse aberto para formar parcerias de estudo com qualquer pessoa que faça da teoria uma das dimensões da formação na educação superior e pós-graduanda. Me recuso a dizer que estudantes negros e negras, que estudaram em escola pública e provêm de famílias da classe trabalhadora não devem, não podem e não "servem" para discutir questões teóricas. Para mim, isso sim é racismo. Um populismo racista que esconde seu racismo. Neste sentido, reafirmo meu compromisso democrático de construir acessos de estudo que, em geral, são reservados a práticas de exclusivismo racial para garantir o poder dos brancos ricos e bem-nascidos, o que não é meu caso, apesar de branco. Sigamos na luta, mesmo diante de tantas incompreensões. E, como diz Bourdieu, a luta contra a dominação simbólica também passa pela luta teórica. Os brancos neoliberais do mundo dominante usam a teoria econômica como arma de dominação para impor a precariedade a todos e a todas, temos que exercer o contrapoder teórico, e estudantes negras e negros da classe trabalhadora devem, podem e são sim muito capazes de dar um baile em questões teóricas nos bem-nascidos poliglotas e cosmopolitas das elites brancas mundiais. É assim que penso e sinto. Críticas serão bem-vindas.

A luta política também é uma luta teórica.

Segundo Bourdieu, as lutas políticas também funcionam como lutas teóricas. Não apenas, mas também. Para ele, nós, cientistas sociais e pesquisadores em geral, temos que fazer frente com os movimentos sociais contra os modelos teóricos do neoliberalismo que se difundem como vulgata neoliberal através das mídias e outros canais, exercendo um forte efeito de teoria, de naturalização dos pressupostos teóricos do atual modelo dominante. Em cada fala que trata a conduta neoliberal como natural, há uma aceitação a um modelo teórico abstrato, adesão quase sempre inconsciente. Ou seja, a teoria é sim uma arma de dominação e também uma arma de luta contra a dominação. É também, não é a única frente, nem a mais importante. Mas, para nós que lidamos com teorias, a luta teórica contra o neoliberalismo teórico que virou senso comum e que não é reconhecido como uma teoria abstrata e a-histórica é uma frente imprescindível. Os pressupostos do neoliberalismo estão de tal modo incrustados nos quadros mentais das pessoas que até entre cientistas sociais o credo neoliberal virou a coisa mais normal e sensata do mundo, e não apenas pelo discurso dos que assumem o credo como o seu, mas igualmente pela prática efetiva dos que dizem ser contra tal credo. Para Bourdieu, o fatalismo economicista de um certo marxismo casou como uma luva com o fatalismo economicista da globalização neoliberal, baseada numa destruição de conquistas sociais e de direitos coletivos. O efeito de teoria do modelo teórico abstrato é um efeito real. Se a posse de modelos teóricos abstratos não fosse um dispositivo fundamental de poder, o neoliberalismo não teria tantos "pensadores", consultores, assessores, difusores, atuando de modo incessante, há mais de 30 anos, para fazer de um modelo teórico abstrato, a opinião de "todos".

Capital teórico ou sobre a posse da teoria.

Sim, claro que estou também consciente do fato de que a teoria, a posse da teoria, o capital teórico, é um falo, uma insígnia de poder, o domínio da teoria no campo acadêmico é um diferencial de poder em relação ao qual até mesmo os que criticam abertamente seu uso, o investimento nele, não abrem mão de sua posse e maestria com receio de serem preteridos e lançados em posições ainda mais dominadas frente aos dominantes no campo, que são aqueles que sabem otimizar seu capital teórico, sabem lucrar com eficiência, usando politicamente e profissionalmente seu capital teórico. Dispor de um capital teórico excessivo pode inclusive ser classificado como uma forma de incompetência. Tudo é bem complexo.

Teoria das desigualdades

Segundo Göran Therborn, existem três maneiras de analisar a relação entre diferença e desigualdade. Diferenças podem ser horizontais. Não precisam necessariamente envolver ranking. Diferenças são também uma questão de gosto e de pensamento. De modo que entendimentos diferentes formam realidades plurais. Diferenças, ademais, não são necessariamente extinguíveis. Já as desigualdade são verticalizantes, produzem ranking, violam normais morais de igualdade humana, e geram situações injustas onde pessoas moralmente erradas são melhores recompensadas do que outras moralmente justas. Enfim, "desigualdades são diferenças hierárquicas, evitáveis e moralmente injustificadas". Há três tipos de desigualdade. O primeiro tipo é a desigualdade vital que influencia questões de saúde e morte. Envolve fatores que incidem conjuntamente sobre expectativas de vida e taxas de sobrevivência e óbito. O segundo tipo é a desigualdade existencial. São fatores que atingem as pessoas e restringem a liberdade de ação das pessoas. A desigualdade desse tipo, a existencial, nega direitos, anula processos de reconhecimento, gera falta de respeito e exclusão das esferas públicas. O terceiro tipo de desigualdade é o tipo mais conhecido, a desigualdade material. É a desigualdade de recursos, tanto de oportunidades como de resultados, e o exemplo clássico é a distribuição de renda. Mas, além de entender que desigualdades se distribuem analiticamente em tais categorias (envolvendo relação com diferenças e tipos de desigualdades) as desigualdades são socialmente e culturalmente produzidas, são históricas. E há quatro formas, segundo o autor, de produzir desigualdade na vida sociocultural e histórica dos humanos. São quatro mecanismos sociológicos de produção de desigualdades: distanciamento, exclusão, hierarquia e exploração. O distanciamento estabelece relações entre os que correm na frente e os que ficam para trás. A exclusão já se define por uma barreira socialmente interposta a certas categorias de pessoas para que estas não disputem com outras categorias a vida socialmente considerada significativa ou "boa vida". As hierarquias são escalonamentos de posições, funções e cargos, geram posições superiores relativamente às posições inferiores que, por sua vez, também são relativas. E, por fim, há a exploração, que envolve o estabelecimento de submissões para os pobres, os trabalhadores, em oposição aos ricos, os proprietários. Na realidade social, esses fatores, tipos e mecanismos atuam embaralhados, são distinguíveis apenas para fins analíticos. Há, por conseguinte, reforços circulares entre esses mecanismos. Rebatimentos. Reverberações.

É possível uma teorização pós-metafísica?

A teorização da vida social está enraizada em contextos históricos concretos, por mais amplos que sejam, de modo que não se pode considerar uma teoria social sem problematizar suas condições de existência. A universalidade não é um a priori, não há uma racionalidade teórica cuja universalidade possa ser pressuposta. Existem processos de universalização e as teorizações mais ou menos gerais precisam se defrontar com a complexidade de tais processos. A teoria precisa ser discutida numa perspectiva pós-metafísica. Afinal, a metafísica espreita cada lance da percepção humana.

Fichamento rápido do Novo Movimento Teórico que não é mais tão novo assim.

O NOVO MOVIMENTO TEÓRICO, DE ALEXANDER (FICHAMENTO). Ação e estrutura. Microteorização e macroteorização. Caráter contingente da ordem social e centralidade da negociação individual do sentido coletivo. Estruturas sociais, culturais, econômicas e políticas coercitivas, que possuem caráter determinante. Teoria geral, teoria substantiva e pesquisa empírica sistemática. Empiricismo e racionalismo na relação teoria e pesquisa. Paradigmas ou quase paradigmas nas ciências sociais. Dissensos e pluralidade conflitual. Sobredeterminação teórica e subdeterminação empírica. Critérios de verdade. Discurso e explicação. Sociologia pós-parsoniana. Interacionismo simbólico, etnometodologia, sociologia fenomenológica, pragmatismo, estruturalismo funcional, estruturalismo antropológico, pós-modernismo, pós-estruturalismo. A questão da ordem social. Coletivistas e individualistas. Liberdade versus ordem. O individualismo moderno entre racionalismo clássico, economia política clássica, utilitarismo e romantismo. 1960, clima de crise na sociologia. 1970, marxismos e microteorias. Sentimento de fragmentação da disciplina. 1980, novo movimento teórico. O problema das práticas constitutivas. Antropologia e história. Pós-estruturalismo ou neoestruturalismo.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

A realidade social.

O que chamamos de realidade social não é uma realidade que descrevemos, pois não há realidade independente do processo de sua percepção. Sociologicamente, a realidade social precisa ser estudada a partir da descrição e análise de suas coordenadas simbólicas. O problema do simbolismo na vida coletiva é a questão central da análise sociocultural. O símbolo não corresponde ao real, ele o afronta. O símbolo como afronta ao real. Como corte do real. Um símbolo cortante. Instaurador de realidades virtuais contra o fluxo do real. Coordenadas simbólicas como realidade social específica. Esta realidade sendo uma entidade virtual inscrita como corte contra o fluxo do real. Um signo inscritor? Um signo performativo? Um signo ausente? Um signo flutuante? Um signo em fluxo? Quando se interroga a relação entre ficção e realidade, costuma-se dizer que, em termos pós-modernos, a realidade não passa de uma ficção. O problema com esse relato é que não questiona o modo como a ficção faz parte da produção de um real que não pode aparecer sem ficção. Ou seja, a realidade não é uma ficção. É algo que não funciona sem ficção. Mas, no fundo, a realidade não é algo, pois se trata de devir. Não é um estado de coisas. Há um fluxo do real e nesse fluxo, há contramovimentos de crença e desejo investidos contra o real e sendo afrontados pelo real. A intrusão do real não ocorre sem ficções, mas as ficções não são meras ficções, são efeitos do que há de irreal no real. Uma realidade sociocultural é mais ou menos do que uma narrativa sobre ela?

A dor e o sofrimento dos outros: desafios para a teoria social.

Uma reflexão teórica, a meu ver, não pode ser insensível aos modos de dor e sofrimento dos outros. Em um mundo no qual há formas cada vez mais enfáticas de indiferença e insensibilidade moral e ética diante da dor dos outros, desenvolver uma teorização que parta do engajamento com novas atitudes de responsabilidade ética com os outros parece-me fundamental. Não se trata de um humanismo no sentido clássico, aproxima-se mais do que Lévi-Strauss chamava de humanismo generalizado, que é o humanismo que não aceita ser de modo implícito uma ferramenta de poder de uma concepção particular de normatividade social que se quer fazer passar por universal, como é o caso das retóricas religiosas ocidentais em suas formas seculares de direitos humanos que justificam a violência do Estado imperial contra os supostos seres não passíveis de luto, tratados como vidas abjetas e descartáveis. O fundamentalismo ocidental se pensa como representante universal da racionalidade humana, isso precisa ser deslocado da episteme da sociologia e da antropologia, pois a misoginia, a homofobia, a transfobia, lesbofobia, racismo e outras formas de paranoia e medo dos outros costumam se vestir de teorias de pessoas de bem. Trazer a dor do outro como alicerce da produção do conhecimento é trazer o pensamento crítico para a seara teórica, afinal, a luta política também passa pela luta teórica, não apenas, é claro.

Seres pensantes

"Não acredito que possa existir nenhum processo de pensamento sem experiência pessoal" (Hannah Arendt). Nem Foucault. Nem Roy Wagner. Nem Walter Benjamin. Enfim, pensar passa pela transformação das condições existenciais dos seres pensantes. E todas as pessoas, sem exceção, são seres pensantes. Ser pensante não é um atributo exclusivo de uma classe de pessoas. "Falar também é uma forma de ação" (Arendt). Saber escutar o sentido da fala de nossas interlocutoras é já compreender o sentido de sua ação. Os modos de agir e os modos de falar, bem como os modos de pensar, se pressupõem reciprocamente. Foucault está de acordo com Arendt também nesse ponto. "Para mim, o importante é compreender. Para mim, escrever é uma questão de procurar essa compreensão, parte do processo de compreender. (...) Para mim, o importante é o processo de pensar. (...) Eu quero é compreender" (Hannah Arendt).

Arendt e a sociologia.

"A compreensão, a interpretação, a hermenêutica compõem a arte de decifrar os signos da expressão" (Arendt). As expressividades simbólicas são mediadoras entre estruturas sociais e agências humanas. A sensibilidade para o compreender está baseada na paixão da compreensão. Paixão que impulsiona cientistas sociais para a pesquisa. A paixão pela ciência. A paixão pela compreensão. "...a sociologia se preocupa não com a realidade como tal, e sim com a realidade que exerce poder sobre o pensamento" (Arendt). Esta reflexão de Arendt sobre a sociologia poderia ter sido escrita por Pierre Bourdieu. Total concordância, pois o ponto em comum entre eles é o sociólogo Karl Mannheim, de quem Norbert Elias foi assistente de pesquisa. E que rivalizou durante anos, após a morte de Max Weber, com o irmão deste, Alfred Weber, sobre o destino da sociologia na Alemanha.

Os sujeitos de desejo.

Teoricamente, a espontaneidade da fala e a percepção de expressividade de sentimentos das pessoas concretas com quem mantemos interlocuções em nossas pesquisas são mais importantes do que quaisquer "teorias" brilhantes e grandiloquentes, o que não quer dizer que se possa prescindir da mediação teórica na construção dos objetos de pesquisa. O que não pode ficar de fora, certamente, são as modalidades de reflexão dos próprios sujeitos sociais, concebidos como sujeitos de desejo, fala, ação e pensamento. Tudo muito bem sabido, mas que não custa nada lembrar.

De volta às estruturas, às estruturas nos fluxos...

Durante um tempo considerável, fui entusiasta da noção de fluxos de desejos e crenças. Ainda considero a noção uma noção central para a analítica das relações sociais. Contudo, ultimamente, tenho voltado minha atenção para o problema das formas, das estruturas. Ou seja, do modo como são postas formas em fluxos e não apenas como nos processos as formas são dissolvidas em fluxos. Essa preocupação com a estabilidade das formas, com a frágil e perecível estabilidade das formas, é o que a meu ver caracteriza o pós-estruturalismo. Pelo menos como eu o entendo. As noções de sistema e estrutura são ainda fundamentais. Mas o sistema é método e não apenas a estrutura, como já havia assinalado Lévi-Strauss com relação a esta última. Se o sistema também é método, torna-se fundamental levar a sério o sistema conceitual do pensamento nativo na elaboração do que seja a não-compreensão específica que nos distancia dele. A diferença é uma relação, não é uma coisa, como enfatizava Bateson.

sábado, 15 de abril de 2017

O eu é e não é o centro da vida social?

Precisamos aprender a analisar a sociedade, evitando o pressuposto de que o nosso eu é o centro de tudo. "Análises" desse tipo patinam no molhado. É preciso compreender o lugar dos outros como fonte perene de julgamento e de interpelação. Os outros julgam e nos interpelam. Talvez fosse esse o fato social em sua coercitividade, generalidade e externalidade a guiar as observações metodológicas de Durkheim. Interessante pensar a contraposição que há entre julgar e compreender. As duas atividades são sociais. São inerentes às relações sociais. Contudo, os mecanismos atrelados a uma e a outra são analiticamente bem distintos. Parece nos levar ao abismo kantiano entre pensar e conhecer. E às próprias condições morais da representação simbólica.

Caminhos múltiplos

"É difícil dizer a verdade, pois, por mais que só haja uma, esta é viva e tem feições vividamente cambiantes" (Kafka apud Arendt). Lembro-me que Foucault falou algo muito parecido, que a verdade possui múltiplos caminhos e sem problematizar essa multiplicidade não há atitude orientada para a verdade. Falta-se com a verdade quando se neutraliza sua multiplicidade de realização.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Política do ressentimento

O ato de lutar por liberdade está relacionado a uma tomada de posição que envolve sair da vergonha social que domina o dominado para uma postura de orgulho, um orgulho na luta. É esse ato de luta, que implica na formação de um orgulho de quem luta, que tanto machuca a alma subalterna de quem não para de sentir vergonha de si mesmo e apenas sente um prazer distorcido na mistura de amor-ódio dirigido à "amada" imagem dos Senhores. As posições dominadas são caracterizadas por um assujeitamento baseado na vergonha de si. Alguns dominados rompem com a vergonha, elaborando formas de orgulho de si. Contudo, há duas maneiras disso ocorrer. Há o dominado que sente orgulho de ser subalterno do Senhor. Sente orgulho de ser o servidor dos poderosos. Um orgulho enviesado, frágil, raivoso, portanto. Outra forma de orgulho é a dos que lutam por liberdade e direitos. Mas ambas as formas são assombradas pelos sentimentos de ressentimento que marcam os corpos subalternizados.