sábado, 30 de novembro de 2013

A questão da inteligibilidade da realidade social.

A inteligibilidade da realidade coletiva, do ponto de vista sociológico, está em função dos modos de compreensão com que os atores sociais resistem ao caráter sem fim e sem sentido do real. Quando os atores sociais imprimem inteligibilidade à realidade social, os esquemas de percepção, as formas de imaginação, os recursos de memória, as maneiras de pensar e os meios simbólicos empregados operam numa zona de opacidade onde linguagem e mundo social não se distinguem com nitidez, uma vez que a linguagem é uma função de elaboração do domínio de realidade. Todavia, os usos da linguagem para a construção de um sistema de delimitação do que seja a realidade social estão em função do campo das relações de forças reais. E o que é o real que atua nestas forças em um campo? É o devir, é o fluxo de impulsos, crenças e desejos, é aquilo que sempre escapa às tentativas de imposição de fixidez e põe a fantasia de duração dos atores sociais em questão. A realidade social é confusão. O mundo social funciona como resistência à confusão. Controlar a confusão traz ganhos de inteligibilidade, mas também engessamento do fluxo. Dispersar as formas de controle da confusão traz abertura para novas práticas, mas também risco de morte, desterritorialização absoluta. (nota de estudo, enquanto relia o famoso texto do Winch, eu o tinha lido pela primeira vez em 1995, foi bom retornar).

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Segurança, população e território: um lembrete.

Na formação do Estado moderno, desde o século XVI e XVII, a razão de Estado é clara: o Estado para se manter em estado não reconhece leis, nem direitos, nem finalidades que lhes são extrínsecas. O Estado só reconhece a si próprio e tudo aquilo que fortalece sua força de Estado. O governo do Estado não hesita em sacrificar alguns em nome do todo (o Estado). É a violência do Estado na raiz do conjunto das brutalidades cotidianas. Sobre violências e brutalidades. Ver artigo de Genet e nota apresentando a discordância de Foucault sobre essa relação entre o brutal e o violento.

Contingência radical do mundo social.

O mundo social humano é eminentemente contingente, inscrito no plano das contingências históricas, portanto, quaisquer divisões reconhecidas como naturais em assuntos coletivos operam os limites que instauram uma dominação simbólica.

sábado, 23 de novembro de 2013

A busca pela pessoa no campo.

Na relação com que indivíduos não-moradores de favelas mantêm com os que são identificados como moradores de favelas, a distinção nós e eles, com seu primitivismo, suas pressuposições quanto à selvageria do outro, por meio de imputações de criminalidade e promiscuidade generalizadas na elaboração da moldura a partir da qual moradores de favelas são representados, é que residia o problema central da minha inserção inicial em campo. Como desfazer a distinção nós e eles no caso específico do meu trabalho de campo? A solução que encontrei foi adentrar no universo da favela seguindo as sugestões de uma antropologia da pessoa. Ou seja, ao postular formas de vida na favela que pudessem ser pesquisadas como estilos de existência, criava um recurso de pesquisa segundo o qual não era a privação, nem a falta, nem a desestruturação, que se buscava na pesquisa na favela, mas os modos de existência das pessoas que lá moravam. E se lá moravam pessoas, essa era o deslocamento que eu estava a buscar em campo, qual seria a concepção nativa de pessoa na favela? Que tipo de compreensão havia na favela sobre o que seja tornar-se uma pessoa? Ou dito de outro modo: que tipo de não-compreensão seria possível confrontar com minha não-compreensão do que fosse uma pessoa?

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O real como devir.

Não é possível definir peremptoriamente o que seja o real. Qualquer definição pressupõe uma estabilização do real na forma de estado de coisas. Todavia, dizer algo sobre algo não é uma tarefa simples. Dizer algo sobre algo é pressupor que é possível ver algo, há uma metafísica nessa pretensão de adequação entre espírito e coisa. Wittgenstein discutiu muito bem isso na sua crítica da filosofia. Apesar disso, pode-se partir de uma noção heurística do real como fluxo, real como devir e isso pode ser útil metodologicamente, o que não quer dizer que o problema da ontologia histórica desapareça. Fluxos das falas, fluxos de desejos, fluxos de impulsos, fluxos de crenças, fluxos e mais fluxos: o fluxo do real. A forma do fluxo, a fixidez no fluxo, a esquematização dos fluxos, a elaboração do fluxo, o trabalho de enquadramento dos fluxos, os recortes de fluxos: o fluxo do pensamento. Maneiras de agir intrinsecamente ligadas a maneiras de pensar: devir. Não resolve o problema, pois se algo é construção cultural, se é preciso afirmar isso, significa que algo não o é. E o que não é construção cultural? Todo o real é uma construção cultural? Nem realismo, nem nominalismo. O nominalismo histórico é uma boa solução para a análise histórica, mas não o é para a física. O conceito de realidade da mecânica quântica opera com um relativismo diferente do das ciências sociais. Perspectivismo? Bruno Latour fala ironicamente de um realismo radical, que leva tão a sério o real que busca entender a produção do real. Les modes d'existence. Construtivismo ou construcionismo? That's the question! A natureza natural é imanente? A percepção cultural da natureza varia, mas a natureza natural varia em função desta percepção cultural? São questões, apenas..Nenhuma resposta. Sim, para o mundo sociocultural e histórico das coletividades humanas. Sim, do ponto de vista da história e das ciências sociais. Mas há um problema. Os fatos não existem, ok. Isso não quer dizer que todos os eventos sejam simbólicos. A crise da representação pode levar à solução pós-moderna. Não sei se ela é suficiente. Afinal, as estruturas não são reais, mas os sistemas são. A fronteira entre eventos reais e eventos imaginários é tênue, opaca, confusa, mas se há fronteira, há uma dimensão real e uma dimensão imaginária. Lembro de Foucault dizendo: Saber não é poder, se fosse, não haveria duas palavras, uma para poder e outra para saber. É a mesma coisa. Mas concordo plenamente que a análise sociocultural e histórica não usa o "mundo real" como padrão referente. Não tem sentido isso. Os fatos científicos são meros constructos. Whitehead discutiu isso. O primeiro Wittgenstein também discutiu isso e desistiu de buscar correspondência entre estruturas mentais e estruturas do mundo que garantissem os estados de coisas.

saber e pensamento

O pensamento não é exclusividade de nenhum tipo de saber, ao contrário, "é uma propriedade de qualquer tipo de saber" (RM, p.193).

Subjetivação

PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO "subjectivation est indissociable d'un processus de connaissance qui fait de l'obligation de chercher et de dire la vérité de soi-même une condition indispensable et permanente de cette étique; si subjectivation il y a, elle implique une objectivation indéfinie de soi par soi" (Foucault).

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Os signos e os sentidos.

Um sistema de signos. Domínios de experiência, campos de relações sociais e mundos socioculturais são criados e recriados com signos. O signo e o evento estão consubstanciados. Entre sigo e acontecimento, há pressuposição recíproca. Não há sentido em falar de história material, de um lado, e história das ideias, do outro. A divisão entre materialidade e simbolismo é uma falsa divisão. O simbolismo é uma materialidade, o que não quer dizer que o símbolo não se relacione com o real, o que é importante aqui é dizer que ele se relaciona consigo mesmo na relação que entretém com o real. O signo não funciona apenas como índice de uma realidade. O signo também é significante de significante, mas não é neste sentido estruturalista que gostaria de insistir. Estou tentando pensar o signo como signo formador (D.). E os signos podem ser usados para formar sistemas pluralistas e abertos na vida coletiva. É essa dimensão pragmática do signo, uma pragmática das relações sociais e culturais, que pode ser o elemento distintivo. Segundo Deleuze, há quatro grupos de signos formadores na obra de Proust: signos mundanos, signos amorosos, signos sensíveis e signos artísticos (ver RM, p.195). Duas obras que marcaram profundamente minha maneira de interpretar o funcionamento da vida social, maiores entre maiores, inclusive em números de páginas, foram: A comédia humana (só consegui ler os treze primeiros volumes) e Em busca do tempo perdido (esse eu li todo, uma vez em português e outra vez em francês, comparando as duas). Poderia acrescentar também a estas duas obras: O homem sem qualidades, Thomas Mann todo (ainda não terminei de ler todo), Sexus, Nexus, Plexus, Machado de Assis, Borges, Dostoiévski, Ilíada e Odisseia, mas iria mais complicar do que ajudar. Vou deixá-las implícitas. Mas como considerar os quatro tipos de signos formadores? Signos mundanos, como analisa Roberto Machado, são marcados pela heterogeneidade. É a segmentação que faz um conjunto aberto de grupos específicos ou quase-grupos disparando para todos os lados seus próprios meios, pois os meios intelectuais dos grupos ou quase-grupos são mobilizadores de sistemas próprios de signos com os quais se faz imagem, ideia, valor e crença de grupo. São mundos sociais que se classificam mutuamente de modo agonístico, menos antagonismo e mais agonismo classificatório. Os diversos mundos sociais aí presentes nessa potlatch possuem seus porta-vozes e suas porta-bandeiras. Emissores de signos que dão a consistência a cada coletivo. Como os signos se relacionam com os sentidos? É importante lembrar, como faz Roberto Machado, que signos por ser emitidos por pessoas, por objetos, por matérias. Os signos estão relacionados a emissões de singularidade? A emergência do singular é simultaneamente discurso e acontecimento. Mas como relacionar regimes de signos, no sentido semiótico, regimes de discursos, no sentido semiológico e regimes de verdade, no sentido genealógico? Signos são de vários tipos, na possuem nem a mesma relação com a "matéria em que estão inscritos", nem são emitidos segundo as mesmas modalidades de emissão, produzem efeitos plurais sobre intérpretes, com relações heterogêneas com os sentidos e também com as faculdades de conhecimentos que os interpretam, mudam de relação no que diz respeito às estruturas temporais e às essências com as quais se relacionam. (cf. RM). Signos formam sistemas plurais e abertos de signos.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Ação moral e intervenção estatal na vida dos indivíduos.

O exame das relações entre os indivíduos e as entidades sociais deixa entrever que as técnicas, práticas e procedimentos administrativos estão investidos de formas de racionalidade impregnadas de objetivos morais de gestão da conduta do outro pela individualização de sua posição frente ao Estado, ou seja, as tecnologias políticas se propõem a produzir ordem social numa chave de intervenção onde a moralidade pública ganha uma expressão central. A relativa autonomia dos jogos éticos dos indivíduos passa a ser alvo da intervenção do Estado. As maneiras de viver e os modos de existência, e tudo o que se refere à experiência de si, tornam-se assuntos de interesse e de intervenção. Os sentimentos, os desejos e as inclinações dos indivíduos, quaisquer formas de experiência de si que envolvam novas sensibilidades socioculturais passa ao status de assunto de polícia e de governo. (cf. Foucault).

Concepção de humano (além do humano).

Errar é humano. Errar como erro e errar como errância. É uma das pouquíssimas generalizações teóricas que se pode encontrar na obra de Michel Foucault. Nem ele, profundo adversário dos universais a priori, deixou de formular uma concepção de ser humano. Seres humanos como seres pensantes, onde formas de agir e formas de pensar se pressupõem mutuamente. Entre erros e errâncias. Foucault aprendeu muito com Georges Canguilhem, não há de se negar. Só há a priori histórico, certamente, então, nenhuma forma de humano pode ser pressuposta. Apenas na perspectiva da própria prática de sentido, que produz sujeito como multiplicidade do seu campo de práticas, pode-se falar de erro ou certeza, errância e fixidez, a forma no fluxo é um ato de apropriação. Dá para entender assim por que Foucault não gostava de Wittgenstein e se aproximava muito, mas muito mesmo, de Austin. O conceito de discurso em Foucault é austiniano. Foucault reconheceu isso numa carta que escreveu a John Searle. As formas socioculturais de vida estão a todo tempo sendo desafiadas a elaborar respostas para problemas que surgem ao acaso, na contingência histórica que caracteriza o modo de existência humana, e também sob as injunções da falta de sentido que as assombram. A questão do erro ocupa uma posição central na análise das fragilidades humanas elaboradas pelas respostas dos sistemas sociais abertos, cuja organização é maneira de obter algum tipo de controle sobre a força desagregadora dos acasos. É a própria vida social que pode ser definida segundo a sua capacidade de errar (cf. Foucault, iv, p.774). E o errar precisa ser entendido em seu duplo sentido de cometer erros, leituras inadequadas das situações, mas também de errância da própria condição social que não para de se deslocar em relação àquilo que a condiciona. "Criar um animal que pode fazer promessas - não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?" (Nietzsche, GM, p.47). Memória e esquecimento e a relação com o sistema de crueldade, a história da responsabilidade humana. Humano é aquele que não existe enquanto ser, é uma ponte (Nietzsche, Heidegger), não existe como substrato, antes ou por trás do "atuar, do devir", 'o agente' "é uma ficção acrescentada à ação" (Nietzsche, GM, p.36). Em AFZ, "uma corda sobre o abismo", "é o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar", "é ser ponte, "é ser uma transição e um ocaso" (Nietzsche, AFZ, p.38) Ter "caos dentro de si" (p.41). "Assombrosa é a existência humana e ainda sem qualquer sentido" p.44. Rumar para fora da coletividade. O estranho (ver Heidegger) em oposição aos que se consideram "bons e justos" e "se dizem os crentes da verdadeira fé", os pastores de rebanho por oposição ao destruidor-criador (Nietzsche, AFZ, p.47). Errar. Erro e errância (cf. Foucault). "criar para si a liberdade de novas criações" e "conquistar o direito de criar novos valores" (AFZ, p.52). "a contradição e a confusão do eu" (p.57). Falas do eu, falas do corpo, "corpo criador" (AFZ, p.61) da apreço e desprezo, de apreciações diferenciais (Foucault). "Avaliar é criar" (Nietzsche, AFZ, p.86). O que luta com o acaso e com o absurdo, o que não tem sentido, tornar-se criador de sentido e valor (ver p.104). Aquele que entre humanos dificilmente se cala (p.119). Falar. Capazes de pensamento, ação e imagem de ação. O silêncio que é herdado fala no herdeiro o silêncio de quem dispôs a herança. O silêncio como herança que fala, mesmo em silêncio. O que vive no abismo entre o dar e o receber, onde os vizinhos não se entendem, onde há veneno nas relações (p.136). Aquele que exerce o poder com as palavras que avaliam o bem e o mal (p.146). Aquele cuja "vida inteira é uma discussão sobre gostos e sabores" (p.147). Aquele que degusta, que saboreia, e faz do gosto apurado uma distinção, um discernimento, um exercício de poder. Os que usam máscaras sobre os rostos, e os rostos são máscaras igualmente, os que escondem com os rostos os sinais do passado, os signos da existência, que tornam difíceis as tentativas de interpretação, os que enganam os intérpretes (p.150). Aquele que vive a experiência de si mesmo e que precisa aprender a desviar o olhar de si para ver multiplicidades de práticas, de realidades, de coisas (p.188), aquele que navega "ao léu por mares incertos", seduzido pelo acaso, que olha para frente e para trás, e não vê "qualquer fim" (p.198). Aquele que cozinha e profere discursos. Aquele que desaprende a conhecer os humanos que vive na coletividade com eles, mas que pode se distanciar, olhar distanciado, olhar para longe, para fora, para o exterior, para o estranho e se fazer estranho no caminho da linguagem. Aquele que cria marcos de fronteiras. Fronteiras morais. A socialidade humana é feita de tentativas, não de contratos, na tentativa se busca quem comanda (p.253), o gosto moral e estético que comanda a mudança das opiniões. Aquele que escuta a tagarelice dos outros e também tagarela, locutor, capaz de locução, aquele que fala e ao falar faz o mundo para si, "toda alma tem o seu mundo, diferente dos outros; para toda alma, qualquer outra alma é um transmundo" (p.259). É o animal mais cruel contra si mesmo. É mortal e apenas agindo, aprende, aprender com as maneiras de agir. Aquele que impõe sua lei para todos. Os que riem da autoridade de quem impõem leis. Os que permanecem estranhos a si mesmos, que não se compreendem a si próprios, os que se mal-entendem (Nietzsche, GM, p.7). Aqueles que nomeiam os valores que criam ou que nomeiam os valores que reconhecem. Experimentador de si mesmo, insatisfeito, insaciado, o mais exposto ao perigo (p.110 da GM).

O ponto de partida de uma pesquisa antropológica nas favelas.

Morar na favela é também uma forma de resistência. Neste sentido, busquei tomar as formas de resistência dos moradores das favelas à beira-mar em Fortaleza como ponto de partida de uma análise das relações de poder (cf. Foucault). Uma das formas de resistência que mais me chamou a atenção no trabalho de campo nas favelas foi a da constituição da pessoa, das concepções que as pessoas da favela possuem sobre a própria pessoa e como tais concepções operam no plano das práticas reais de conduta, na constituição de sujeitos éticos na favela. Ou seja, rompendo com a visão geral e estigmatizando segundo a qual a favela é lugar de marginal, de bandido, de traficante, de criminoso, de indivíduos perigosos, fiz do encontro com pessoas nas favelas um processo de descoberta sobre o jogo de significados que elas realizam para dizerem o lugar do sujeito ético apesar da favela, enquanto significado negativo atribuído de fora ou auto-atribuído por seus moradores, e com a favela, enquanto significado positivo atribuído por quem pensa e sente a favela como "raiz", como lugar de resistência da "pessoa guerreira".

domingo, 3 de novembro de 2013

Infelicidades, segundo Austin.

É possível alguém ser feliz na ameaça que faz ao outro? Quando quem ameça morre, pode-se dizer que houve uma infelicidade de quem ameaçou? Se o ameaçador é malogrado ao se tornar vítimas de outro ameaçador, pode-se dizer que há um circuito de infelicidades na ameaça feliz que se faz ao outro? A ameaça feliz seria o sucesso da ameaça, evidenciado pela morte matada do outro, todavia matar é tornar-se alvo do circuito da matança, o que envolve uma dupla escalada da violência armada.