segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Notas metodológicas

Notas metodológicas. 1) O objeto de análise é um objeto de pesquisa construído para a análise. É um objeto de pensamento teórico e um objeto empírico simultaneamente. Não há acesso ao objeto empírico sem pensamento teórico. A construção do objeto de pesquisa é o confronto entre um campo de questões teóricas e um campo de questões empíricas que define o espaço empírico para o exercício metodológico, analítico, do pensamento conceitual rigoroso. 2) São as relações sociais o objeto da análise. O espaço social reificado é resistente à análise. O espaço social reificado apresenta-se como entidades sociais que impõem a inteligibilidade do social para a mente do pesquisador, as essencializações do espaço social reificado tendem a se impor, buscando capturar a lógica da descoberta. É preciso manter uma vigilância epistemológica constante para evitar que as ferramentas analíticas sejam capturadas pelos discursos dados sobre os objetos dados. A desconstrução do espaço social reificado é um tipo de análise de discurso, uma análise dos discursos performativos que objetificam o espaço social, reificando-o. 3) Se o objeto da análise são as relações, a autoanálise do analista frente à autoanálise dos interlocutores da pesquisa são procedimentos que fazem da troca de condição entre pesquisadores e interlocutores um modo de questionamento da reflexividade na vida social. 4) As relações são o objeto, todavia, há diferentes níveis de análise das relações, e é esse modelo que guia tanto o processo de descoberta quanto o de escrita dos resultados da pesquisa. A partir do ponto cinco, estarei tematizando esses níveis de análise. 5) O primeiro nível de análise é o da interação social, da interação simbólica, na vida cotidiana, no face a face, de modo presencial, mas também no face a face não presencial, mediado pelos usos de mídias expressivas e de comunicação. Neste primeiro nível de análise, há o contexto de interação social e simbólica como contexto de fala dos atores sociais. Os atores sociais falam no contexto da interação simbólica e social. O silêncio é uma forma de fala também. A escuta é uma forma de fala também. As falas são falas sociais, pois são falas que envolvem a relação eu-tu, eu-vocês, eu-nós, nós-nós, eu-eles ou elas. Há uma camada eu do nós e uma camada nós do eu. A análise da corporalidade como sentimento social está nesse plano analítico e também no próximo. 6) O segundo nível de análise é o do habitus. Envolve a dimensão inconsciente das relações sociais. A incorporação de relações de poder. Hábitos mentais, práticas rotineiras e esquemas de percepção, avaliação e apreciação incorporados por indivíduos socializados. Não apenas a corporalidade é o mecanismo sociológico dessa incorporação de relações. A aquisição de estoques de conhecimento, de tipos de representação social e simbólica e outras formas de discursos que funcionem como procedimentos cognitivos, além de emocionalidades que funcionem como ethos, ou seja, como atitudes de valoração e modos de afecção diante do mundo social visado subjetivamente pelo ator social. 7) O terceiro nível de análise é o da consciência reflexiva dos atores sociais, uma dimensão que escapa à análise do habitus, pois este plano de análise, como vimos, destina-se à apreensão da dimensão inconsciente das relações. Já na dimensão da consciência reflexiva dos atores sociais, temos que considerar o problema do monitoramento consciente reflexivo da ação e dos atos sociais pelos atores sociais. A metateoria do habitus não dá conta disso. Aqui, no plano terceiro, a consciência dos atores por ser de dois tipos: uma consciência teórica e uma consciência prática. Há uma compreensão teórica e uma compreensão prática operando na estrutura de consciência do ator social. Analisar a consciência reflexiva é analisar como as compreensões de dois tipos são, entrelaçadamente, construídas pelos atores nos seus projetos de ação, no curso da ação e na interpretação de seus atos sociais. As aspirações, as inclinações, os desejos, os sonhos e as expectativas podem ser analisados neste plano terceiro, mas em conexão com o modo como também foram analisados nos planos analíticos precedentes. 8) O quarto nível de análise é o dos rituais, das práticas rituais. Tanto os rituais da vida cotidiana, como as etiquetas, que estão ligadas aos níveis de análise precedentes, quanto os rituais que compõem a dimensão cerimonial da vida coletiva. Assim, nesse nível de análise, estamos lidando com rituais de interação, rituais de instituição, rituais de poder e rituais de honra e prestígio ligados a estes últimos. Os rituais são mecanismos sociológicos que fazem mediações entre os planos precedentes e os planos institucionais e estruturais que irão ser avaliados a seguir. Assim, examinar as relações sociais como rituais exige uma boa revisão da literatura conhecida como teoria dos rituais. 9) O quinta nível de análise é o dos espaços institucionais. Aqui é a construção social da institucionalidade das relações sociais que está em foco. O papel regulador, fiscalizador e punitivo das instituições, a coercitividade, mas igualmente o papel legitimador dos espaços institucionais. As instituições legitimam e deslegitimam modos de vida, hierarquizando-os, e inclusive descartando-os como ilegítimos. O complexo institucional funciona como quadro, com enquadramento das relações sociais, e os usos das normas, das leis, dos direitos e dos deveres, no contexto dos conflitos sociais passa por este plano de análise. O campo do poder, da política, da gestão de espaços coletivos. E o modo como as práticas socioculturais recortam de modo transversal os espaços institucionais. 10) O sexto nível de análise é o das relações sociais como relações de produção de sentido e de capital. O modo como a distribuição desigual do capital, das condições mais abrangentes de existência da vida social afetam determinando, condicionando e estruturando posições sociais de agentes. Neste plano, a contribuição de uma materialismo histórico radical é decisiva. 11) A última observação é a seguinte: não há entre esses planos de análise um plano que seja determinante de todos os outros. Ou seja, não há "em última instância...". Estamos trabalhando com um modelo de causação circular do sistema social aberto. O sistema social aberto pode funcionar como sistema social, como campo social, como figurações, constelações, redes. O sistema social aberto é reticular, a-centrado, segmentar, mesmo quando consideramos o plano analítico dos espaços institucionais com suas hierarquias que buscam endurecer o que há de molecular no sistema social aberto, pelo fechamento do sistema, algo que nunca é alcançado, exceto quando se provoca a morte histórica do sistema. O conceito metateorico mais relevante para todo o modelo é o de rede de relações. E o conceito metodológico mais relevante que lhe seja correspondente na modelização proposta é o de prática.

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